(Revista Pergunte e Responderemos, PR 292/1986)
Em síntese: Apesar do descrédito que sofre a palavra “milagre” em nossos dias, a Igreja continua a professar a possibilidade e a existência de autênticos milagres. Estes não são simplesmente demonstrações do poder de Deus, mas vêm a ser, conforme a linguagem bíblica, sinais, isto é, acenos eloqüentes de Deus aos homens a fim de dissipar dúvidas ou demonstrar a Providência e o Amor de Deus para com as criaturas. – De modo especial, a Igreja crê que Deus faz milagres que atestem a santidade de homens e mulheres que a devoção popular considera “santos”; a Igreja, para confirmar tal opinião, geralmente espera que Deus se pronuncie sobre a temática, realizando um ou dois milagres ou sinais. Existe em Roma a Congregação para as Causas dos Santos, que examina a documentação relativa a cada candidato a canonização e que, por conseguinte, se interessa pela autenticidade ou não de fatos tidos como milagrosos.
O artigo seguinte apresenta declarações de um professor e médico que trabalha em tal Congregação, e oferece três relatos de milagres reconhecidos como tais pelos peritos médicos e canonistas.
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Os milagres hoje em dia correm o perigo do descrédito, pois se verifica que muitos fatos até época recente tidos como inexplicáveis são elucidados pela ciência médica e pela parapsicologia. Não obstante, a Igreja continua a valorizar os milagres dentro de certas condições:
1) o episódio em foco tenha realmente ocorrido como fato histórico (é preciso examinar criticamente os relatos de “prodígios” logo que sejam apresentados pelo povo de Deus; muitas narrações são então comprovadas como fantasiosas e não históricas);
2) o episódio histórico seja totalmente inexplicável pela ciência;
3) haja ocorrido em condições dignas de Deus, como resposta do Senhor a um contexto adequado ou a preces de fiéis devotos. Esta terceira característica é muito acentuada em nossos dias, pois o milagre só tem sentido na medida em que é um sinal (semeion, diz sempre o evangelista São João) de algo maior ou de uma mensagem de Deus aos homens. Exemplo típico de milagre-sinal é o da cura do paralítico em Mc 2,3-12: Jesus, ao vê-lo, perdoou-lhe os pecados; visto que os circunstantes não acreditavam na validade do gesto do Senhor, Este mandou que o paralítico se levantasse e andasse. O “sinal” comprovou a autoridade de Jesus; tornou-se uma palavra mais eloqüente do Senhor Jesus.
Precisamente porque acredita no valor dos milagres, a Igreja exige, para a canonização dos Santos, milagres comprovados; estes são tidos como sinais de Deus que autenticam as virtudes dos Santos e possibilitam à Igreja propor tais fiéis como amigos de Deus e intercessores dos homens. – Aliás, é de notar que toda canonização de Santo é proferida com a assistência infalível do Espírito Santo; é uma afirmação de fato dogmática, ou seja, do fato de que tal ou tal servo(a) de Deus é modelo de vida cristã e pode ser tido(a) como intercessor(a) junto a Deus; em tal tipo de definição a Igreja não pode errar, pois toca a fé.
Recentemente o jornalista italiano Vittorio Messori foi entrevistar personalidades da Santa Sé relacionadas com os processos de canonização dos Santos. Nas páginas subseqüentes, publicaremos partes de um diálogo havido entre o jornalista e o Prof. Dr. Marcello Meschini, médico legista de Roma e Secretário dos Processos de Averiguação de Milagres.[1]
1. Milagres: como averiguá-los?
O Dr. Marcello Meschini logo observou que, para se poder falar de milagre, se requerem sucessivas perícias médicas: o exame de cada caso começa na própria diocese da pessoa tida como virtuosa; os médicos locais estudam o ocorrido e recolhem toda a documentação atinente ao fato.O material é enviado à Santa Sé, que submete o caso à “Consulta Médica” da S. Congregação para as Causas dos Santos; uma Comissão de cinco médicos examina os dados com plena liberdade cientifica e autonomia de decisão: as discussões podem tornar-se candentes. Desde que os médicos reconheçam a total inexplicabilidade do caso, este é levado a exame teológico, que ocorre em duas fases: primeiramente, há uma sessão de teólogos apenas, que investigam os aspectos religiosos das ocorrências (terá havido aí manifestações supersticiosas, vã glória ou, ao contrário, autentica piedade?); depois, o documentário é apresentado a uma Congregação de Cardeais e Bispos. Os resultados de todas essas perícias são levados ao Papa; se este os reconhece como válidos, lê-se na sua presença o decreto referente à validade do milagre. Assim é aberto o caminho para a Beatificação ou para a Canonização da pessoa em foco.[2] O Santo Padre pode dispensar da exigência de milagres desde que haja evidência de se tratar de um mártir que derramou o sangue estritamente por fidelidade à fé católica.
Observou o Dr. Marcello Meschini:
“Para que uma cura seja por nós considerada como cientificamente inexplicável e milagrosa, precisamos de conhecer bem o diagnóstico e as probabilidades de cura; precisamos também de saber se foi cura definitiva, completa, obtida sem tratamento adequado e em período de tempo não natural, isto é, de maneira instantânea ou inexplicavelmente rápida.
Para poder definir isto tudo, requer-se evidentemente uma documentação rigorosa a ser estudada pela Postulação da Causa, que nem sempre é fácil obter; os peritos podem pedir novas pesquisas e, mesmo assim, são muitas vezes obrigados a pronunciar-se negativamente por falta de documentos suficientes”.
2. Alguns exemplos
Acrescentou o Prof. Meschini:
“Muitos pensam que as curas que reconhecemos e que servem aos processos de canonização, devam referir-se à vida e à morte de algum enfermo; este, sem a intercessão do Santo, teria morrido. Na verdade, porém, os casos são muito diversificados; não exigimos que as previsões de cura tenham sido nulas para podermos falar de milagres”.
A fim de ilustrar as suas afirmações, Meschini citou o seguinte caso: havia uma menina afetada de piodermite, isto é, uma infecção da pele que se estendia sobre o rosto inteiro; com o tempo, a doença poderia provocar danos orgânicos, mas no momento limitava-se a desfigurar a paciente (causando-lhe, sem dúvida, distúrbios psicológicos). Ora a invocação do Servo de Deus N.N. provocou o completo e definitivo desaparecimento da moléstia no decorrer de uma noite. O caso foi reconhecido como milagroso e ocasionou a glorificação do ‘candidato’.
Eis outro caso mais recente e impressionante, em que a vida não estava em perigo, mas se tornara mais difícil: um menino indiano nascera com os pés tortos; as plantas dos pés não pousavam sobre o chão, mas estavam voltadas uma para a outra, de modo que só era possível à criança arrastar-se sobre a parte lateral dos pés. O médico de sua pobre aldeia natal diagnosticara o caráter definitivo e irreversível da deformação. Com efeito, o menino, ao crescer, não pudera senão aprender a arrastar-se com muito cansaço, apoiando-se em duas bengalas. Certa manhã, quando penosamente se dirigia à escola distante três quilômetros da choupana de sua família, deixou-se cair esgotado numa atitude de desespero. Sua irmã, jovenzinha, o acompanhava; para consolá-lo, propôs-lhe que orassem. Mas a quem haveriam de rezar? A menina lhe sugeriu que invocassem a Fundadora do Instituto Religioso no qual sua tia se fizera freira. Esta, com efeito, dizia muitas vezes que a Madre “fazia milagres”. Dito e feito; as duas crianças invocaram a Madre e logo ocorreu a cura. O enfermo pôde imediatamente desfazer-se de suas bengalas e caminhar normalmente até a escola, onde todos conheciam a sua deformação e, por isto, ficaram perplexos. Para dissipar as dúvidas sobre a realidade dos fatos, pediram ao menino que fosse jogar bola com os colegas; ele o fez, sim, naturalmente experimentando o grande cansaço de quem treina pela primeira vez.
Eis mais um exemplo de milagre reconhecido como tal, segundo o Prof. Dr. Marcello Meschini:
Uma menina canadense, afetada de leucemia, era vítima também de um tumor retro-esternal (atrás do osso esterno), dentro da caixa torácica – o que lhe acarretava sufocação crescente. Apesar de sucessivas intervenções cirúrgicas, a situação da menina foi-se agravando a ponto que os médicos recomendaram aos pais que a levassem para casa a fim de que morresse entre os seus. Na falta de esperança de cura, os genitores chegaram a preparar o traje com que a menina seria sepultada. Eis, porém, que um dos familiares lhes sugeriu começassem uma novena a um “Servo de Deus” cuja causa estava sendo examinada em Roma. Ora a paciente foi piorando sempre até o último dia da novena, quando, com enorme surpresa de todos, ela se sentou na cama e pediu alimentação. As suas atitudes doravante eram de uma pessoa sadia. Foi então submetida a rigorosos exames médicos, que evidenciaram a total inexplicabilidade do fato; todavia, antes de emitir um juízo sobre a cura, os peritos esperaram oito anos, a fim de se certificar de que o tumor não tornaria a aparecer. Após este prazo, os médicos puderam afirmar a plena inexplicabilidade cientifica da cura.[3]
Após narrar tais fatos, acrescentou o Prof. Dr. Meschini:
“Hoje em dia o progresso da medicina é tal que torna mais raros os casos em que devamos reconhecer curas dotadas de características não naturais ou prodigiosas. Doutro lado, tal progresso tornou possível a utilização de meios que controlam a índole total e definitiva da cura com precisão e segurança que outrora não tínhamos. Em todo caso, nas minhas aulas para os jovens que freqüentam o Studium instituído pela Congregação para as Causas dos Santos, recomendo absoluto rigor, objetividade, aceitação tão-somente dos princípios reconhecidos pela ciência oficial; nunca admitam fazer de hipóteses teses comprovadas, transformar proposições prováveis em certas e seguras, nem recorram apenas ao método dedutivo.[4] Todos trabalhamos para a glória de Deus; ora o Senhor não precisa de afirmações vagas, ilusórias ou superficiais. Mas é o próprio Deus do Evangelho que nos incita sempre, e de todo modo, a procurar a verdade”.
São estas algumas observações importantes relativas ao tema “milagres”. Verifica-se que a Igreja acredita em fatos que, totalmente inexplicáveis pelos estudiosos, sejam sinais de autêntica intervenção de Deus na história dos homens, … sinais da benevolência e do amor de Deus às suas criaturas necessitadas de uma Palavra “forte” do Todo-Poderoso.
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NOTAS:
[1] Extraímos estes dados da revista JESUS, das Edições Paulinas da Itália, março 1986, pp. 90s.
[2] A respeito de Beatificação e Canonização de Santos ver o artigo de
PR 249/1980, pp. 355-364.
[3] Os médicos não falam de milagre no sentido teológico. É à Comissão de canonistas e teólogos que compete examinar o fato do ponto de vista da fé.