(Revista Pergunte e Responderemos, PR 462/2000)
Em síntese: A morte repentina do Papa João Paulo I em setembro de 1978 causou grande surpresa e sugeriu hipóteses várias, entre as quais a de ter sido envenenado o Pontífice. Um livro recente de dois jornalistas italianos recolhe testemunhos e dados diversos a respeito, chegando à conclusão muito provável de que João Paulo I morreu de embolia pulmonar, cujos sintomas ele havia sentido na tarde anterior ao desenlace; recusara, porém, chamar o médico, de modo que foi vítima do mal que o acometia.
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Os jornalistas italianos Andrea Tornielli e Alessandro Zangrando publicaram um livro cujo título, em tradução portuguesa, soa: “João Paulo I. O Papa do Sorriso” (editora Quadrante, São Paulo). A obra apresenta uma biografia do Pontífice, cujo penúltimo capítulo trata da morte de Papa Luciani. Os dados aí coletados são importantes para elucidar tão repentino desenlace, diante do qual houve quem levantasse a hipótese de envenenamento. – Visto que o tema é de grande interesse, transcreveremos, nas páginas subseqüentes, os segmentos que melhor esclarecem o enigma.
A MORTE
“Peço-te uma graça: quisera que Tu estivesses ao meu lado na hora em que fechar os olhos para este mundo. Quisera que segurasses a minha mão na tua, como faz a mãe com o seu filho na hora do perigo. Muito obrigado, Senhor!”
Na noite de 28 para 29 de setembro de 1978, o Papa Albino Luciani morre repentinamente. “Hoje, 29 de setembro, por volta das 05h30min, o secretário particular do Papa, o reverendo John Magee, ao ver que o Santo Padre não se encontrava na capela privada do seu apartamento, como de costume, foi buscá-lo no seu quarto e achou-o morto no leito, com a luz acesa, como se ainda estivesse imerso na leitura. O médico, Dr. Renato Buzzonetti, que acudiu imediatamente, comprovou a sua morte, que presumivelmente lhe sobreveio por volta das 23 horas de ontem, e diagnosticou «uma morte repentina devida a um enfarte agudo do miocárdio»”.
O atestado de óbito, assinado por Buzzonetti e pelo diretor de serviços sanitários do Vaticano, Mano Fontana, diz: “Certifico que Sua Santidade João Paulo I, Albino Luciani, nascido em Forno di Canale (Belluno) em 17 de outubro de 1912, faleceu no Palácio Apostólico Vaticano em 28 de setembro de 1978, às 23 horas, por «morte imprevista, de enfarte agudo do miocárdio». O óbito foi comprovado às 6 horas do dia 29 de setembro de 1978” (pp. 108s).
“A notícia da morte prematura do Papa dá a volta ao mundo num abrir e fechar de olhos. Os fiéis estão atônitos, consternados. O rosto pacífico e sorridente do Pontífice vêneto, as suas lições de Catecismo, o seu modo simples de falar, a sua grande humildade, haviam tocado o coração de milhões de pessoas. O seu corpo é embalsamado dentro das 24 horas seguintes ao falecimento. Com as vestes vermelhas e a mitra branca sobre a cabeça, é exposto primeiro na Sala Clementina, na Basílica de São Pedro. Milhares de romanos acodem a render-lhe a homenagem.
O Papa não deixou testamento: tinha acabado de mandar destruir o que se conservava no Patriarcado de Veneza e ainda não tinha escrito o novo. Como acontecera em Vittorio Veneto e em Veneza, também havia chegado pobre ao Vaticano, sem nenhum bem” (p. 111).
Uma versão tida como mais provável, afirma que o Papa morreu de embolia pulmonar[1].
“O último dia da vida de Albino Luciani havia começado, como de costume, muito cedo. Depois da oração, celebrou a Missa na capela privada e tomou o café da manhã. Às 09h30min recebeu em audiência o cardeal africano Bernaldin Gantin, junto com os secretários dos conselhos pontifícios Cor Unum e Justitia et Pax. Falaram dos problemas do Terceiro Mundo. João Paulo I disse a Gantin: “É somente Jesus Cristo quem nós devemos apresentar ao mundo. Fora disso, não teríamos razão alguma para falar; por nossa incapacidade, nem sequer seríamos escutados pelos outros”.
No final da audiência, Gantin notou a energia com que o Papa se levantou e dispôs as cadeiras para fazer uma foto de grupo. Nas horas seguintes, Luciani recebeu os núncios apostólicos do Brasil e da Holanda, o diretor do Gazzetino e nove bispos das Filipinas.
Às 12h30min, João Paulo I almoçou com os dois secretários, Diego Lorenzi e John Magee. A reconstrução de tudo o que aconteceu naquela tarde foi possível graças às declarações posteriores dos dois sacerdotes. Ambos, com efeito, permaneceram em silêncio durante anos. O primeiro a rompê-lo, surpreendentemente, foi Lorenzi, no decorrer da transmissão do programa televisivo Gialio, conduzido por Enzo Tertora na RAI 2 em 02 de outubro de 1987, nove anos mais tarde. Lorenzi revelou que na tarde do dia 28 de setembro João Paulo I sentiu uma forte dor no peito. Também o padre Magee, já bispo da Irlanda, depois de ter sido secretário e mestre de cerimônias do Papa Wojtyla, narrou algo parecido, primeiro à revista Trentagiorni, em 1988, e depois, no ano seguinte, ao jornalista John Cornwell. Este último foi autor do livro Un ladro nella notte (Um ladrão na noite), que foi aprovado pelas autoridades vaticanas e serviu para rebater as teses de quem sustentava que o Papa havia sido assassinado.
Depois de uma breve pausa para repouso, João Paulo I confessou a Magee:
“- Não me sinto muito bem”.
O secretário disse-lhe:
“- Deixe-me chamar o doutor Buzzonetti”.
“- Oh não, não…”, respondeu o Papa, “não é preciso chamar o médico. Andarei um pouco pelos quartos”.
Segundo Magee, “o doutor Buzzonetti tinha sido escolhido como médico do Papa Luciani […]. Buzzonetti tinha entrado em contato no sábado anterior com o médico que o Papa tinha no Vêneto, o doutor Antonio Da Ros, e tinham combinado que este último enviaria ao Vaticano o histórico clínico de João Paulo I”. O secretário, portanto, sabia que Buzzonetti era o responsável pela saúde do Papa. Mas o médico não foi avisado desse mal-estar.
Das 14h30min às 16h39min, o padre John Magee ausentou-se do apartamento pontifício para ir buscar uns livros, e deixou o Papa passeando pela sala. Quando voltou, João Paulo I continuava a andar. Uma hora depois, ouviu-o tossir violentamente e precipitou-se em sua direção:
“- Sinto uma pontada”, disse o Papa, segundo relata o bispo Magee.
“- Não seria melhor chamar o médico?”, insistiu o secretário, “pode ser algo grave”.
Luciani voltou a recusar, e pediu à irmã Vicenza que lhe trouxesse algum remédio. Segundo John Cornwell, “com quase toda a certeza, naquele momento o Papa estava sofrendo uma leve embolia pulmonar. Estava realmente doente e precisava da atenção imediata de um especialista”.
Às 18h30min, chegou aos aposentos pontifícios o Secretário de Estado Jean Villot. Foi recebido pelo Papa, com quem trabalhou durante mais de uma hora. Trataram, muito provavelmente, da escolha do novo Patriarca de Veneza.
Terminada a audiência, tanto Magee como Diego Lorenzi se encontravam no escritório da secretaria do Papa. Nesse momento, segundo Lorenzi, João Paulo I queixou-se de outra “terrível pontada”: “Por volta das 19h45min, assomou à porta do seu gabinete de trabalho e disse ter sentido uma pontada terrível, mas que já havia passado”. Lorenzi disse que seria necessário chamar o médico. De novo o Papa se recusou e não foram consultados nem o doutor Buzzonetti nem o doutor Antonio Da Ros em Vittorio Veneto.
O Papa e os dois secretários sentaram-se para jantar. “Naquela última noite, desenvolveu-se à mesa uma conversa estranha” – relata o padre John Magee -. “Eu tinha resolvido lembrar ao Papa que devia escolher com certa antecedência a pessoa que iria pregar o retiro de Quaresma. Ele disse:
“- Sim, sim, é verdade, já pensei nisso, mas o retiro que eu quisera agora seria o retiro de uma boa morte”.
“Eram 20h15min. Disse-lhe:
“- Mas, Santidade, de maneira nenhuma”.
Tinha ainda na cabeça a morte de Paulo VI, e não queria ouvir falar de morte outra vez. Mas o Papa insistiu:
“- Sim, sim, gostaria de fazer um retiro desse tipo”.
Dom Diego lembrou-se de uma oração. E o Papa corrigiu-o:
“- Não, isso não é assim. A forma original dessa oração é: «Ó Deus, dá-me a graça de aceitar a morte da forma como ela há de me chegar»”.
Depois do jantar, incumbiram dom Diego de pedir uma ligação para o cardeal Giovanni Colombo em Milão. O Papa e Magee foram juntos à cozinha para dar boa-noite às freiras. Quando se completou a ligação, Luciani correu velozmente pelo corredor. Segundo Cornwell, “este foi o último esforço da sua vida, o que lhe provocou a embolia” (pp. 112-115).
A sobrinha do Papa, Pia Luciani Bassi, recorda precedentes de mortes repentinas ocorridas na família: “Nós pensamos que foi uma morte natural, porque também o seu avô e as suas duas tias morreram assim, de repente, de um enfarte. Meu tio teve uma boa morte. Ele teria escolhido uma morte desse gênero, sem incomodar ninguém, enquanto trabalhava pela Igreja” (p. 120).
“Há outros episódios que podem ser lidos como uma premonição da morte. Na tarde de 26 de setembro de 1978, Edoardo Luciani, o irmão do Papa, chega ao Vaticano. Vai de viagem à Austrália, mas decide visitar João Paulo I antes de iniciar o vôo. “Jantamos juntos – recorda -, e depois passeamos quase até a meia-noite pelo jardim do último andar do edifício. Meu irmão disse-me que o cardeal Villot tinha manifestado a intenção de aposentar-se e que estava pensando em quem poderia sucedê-lo na Secretaria de Estado. Também falamos do cardeal Gantin, a quem estimava muito. Na manhã seguinte, assisti à missa e depois tomamos o café da manhã juntos. Quando chegou a hora de partir, meu irmão quis acompanhar-me pessoalmente até o elevador. E para se despedir, abraçou-me e beijou-me. Fiquei surpreso, porque na nossa família não somos muito dados a semelhantes efusividades. Ainda me causou maior impressão o fato de que, enquanto estava já para entrar no elevador, ele continuou ali, quieto, olhando-me. Virei-me e ele quis abraçar-me mais uma vez. Parti para a Austrália e lá recebi a notícia da sua morte…” Um duplo abraço, quase o presságio de que aquela era a última vez que se viam.
Duas tardes antes de morrer, durante o jantar, João Paulo I teria até feito uma alusão ao seu sucessor. “À mesa falou da sua eleição – conta o padre John Magee-, ainda não conseguia entender a escolha dos cardeais: «Havia outros melhores que eu que podiam ser eleitos. E Paulo VI já havia indicado quem seria o seu sucessor. Estava diante de mim na Capela Sixtina durante o Conclave. Mas há de chegar a sua vez, porque logo me irei embora» (p. 121).
“Outro sinal premonitório. Na manhã de 05 de setembro, o bispo ortodoxo Bons Nikodin morre praticamente nos braços do Papa Luciani ao terminar a audiência. “Quem sabe se algum dia – teria dito João Paulo I ao teólogo veneziano Germano Pattaro – não poderemos subir juntos ao altar de Deus, convertido no altar de todos os cristãos!” (p. 122).
“Albino Luciani, o Papa da misericórdia, morre com um sorriso nos lábios. No último instante sorri a Alguém. Alguém que o amava apresentou-se na hora da sua morte com a ternura de uma mãe.
Tinha-o escrito dom Albino, numa oração de 1947, enquanto dirigia um retiro aos irmãos cartuxos de Vedana: “Peço-te uma graça: quisera que Tu estivesses ao meu lado na hora em que fecharei os olhos para este mundo. Quisera que segurasses a minha mão na tua, como faz a mãe com o seu filho na hora do perigo. Muito obrigado, Senhor!” (p. 123).
Eis o que referem bons autores a respeito da morte de João Paulo I, dissipando versões infundadas.
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NOTA:
[1] Embolia é a obstrução súbita de uma veia ou de uma artéria por um coágulo (N.d.R.).