Papa: infalibilidade papal e definições ex-catedra

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 381/1994)

Em síntese: O presente artigo aborda questões atinentes ao Magistério da Igreja, credenciado por Jesus Cristo para ensinar de maneira autêntica as verdades reveladas pelo Senhor (cf. Mt 16,16-19; 28, 18-20; Lc 21, 31s; Jo 21,15-17…). Tal Magistério tem suas modalidades: 1) Magistério ordinário (o ensinamento comum dos Bispos do mundo inteiro); 2) Magistério extraordinário (definições solenes de Concílios universais e do Romano Pontífice em matéria de fé e de Moral). O artigo apresenta a série de definições proferidas pelos Papas no decorrer dos séculos.

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Há interesse, por parte dos fiéis, em saber quantas verdades de fé já foram definidas pelos Papas no exercício do carisma da infalibilidade. Este desejo é legítimo, mas há de merecer uma resposta abrangente, pois se deve dissipar a concepção de que as verdades da fé começam a ser tais mediante definições ou decretos. Daí a conveniência de propormos, nas páginas subseqüentes:

a noção de Magistério da Igreja;

o significado de uma definição pontifícia;

3) as definições papais registradas através dos séculos.

1. O MAGISTÉRIO DA IGREJA

Jesus Cristo confiou à sua Igreja a função de ensinar as verdades da fé; e, para que o fizesse autenticamente, prometeu-lhe a sua assistência infalível, assim como a do Espírito Santo:[1]

Mt 28,19s: “Ide, e fazei que todas as nações se tornem discípulos, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar tudo quanto vos ordenei. E eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos”.

Mt 10,26s: “Não tenhais medo… Pois nada há de encoberto que não venha a ser descoberto, nem de oculto que não venha a ser revelado. O que vos digo às escuras, dizei-o à luz do dia; o que vos é dito aos ouvidos, proclamai-o sobre os telhados”,

Jo 20,21s: Jesus disse aos Apóstolos: “A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou; também eu vos envio”.

Mc 16,15-20: “Disse-lhes: ‘Ide por todo o mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura.’ E eles saíram a pregar por toda parte, agindo com eles o Senhor, e confirmando a Palavra por meio dos sinais que a acompanhavam”,

A Igreja vem cumprindo a tarefa mediante seus órgãos credenciados, que são:

1) o Magistério ordinário, ou seja, o ensinamento dos Bispos do mundo inteiro concordes entre si sobre artigos de fé e de Moral. Este Magistério ordinário manifesta-se cotidianamente através de palavras orais, impressos, gestos e feitos, como também através da Liturgia, pois lex orandi, lex credendi (as normas da oração são as normas da fé). Grande número de verdades de fé está no ensinamento do Magistério ordinário da Igreja. Quando necessário ou em casos esporádicos, é exercido também:

2) o Magistério extraordinário, que tem duas expressões autênticas:

– as definições de Concílios Ecumênico[2] ;

– as definições do Sumo Pontífice quando fala ex-cathedra.

O Magistério extraordinário supõe sempre condições especiais (dúvidas, controvérsias, contestação…), que solicitem um pronunciamento solene seja de um Concílio plenário, seja do Pontífice Romano. Não é necessária uma definição solene para que haja um dogma de fé.

A definição da infalibilidade pontifícia em matéria de fé de Moral ocorreu em 1870, no Concílio do Vaticano I; todavia não foi nessa data que surgiu a convicção de que o Bispo de Roma goza de assistência especial para definir proposições de fé e de costumes. Essa persuasão tem suas bases na própria S. Escritura e se expressou através da história da Igreja. Tal doutrina, muito antiga na Igreja, foi reafirmada pelo Concílio do Vaticano II na Constituição Lumen Gentium nº. 22-25.

Os principais textos bíblicos atinentes ao primado de jurisdição e de magistério de Pedro e seus sucessores são os seguintes:

Mt 16,17-19: “Jesus respondeu a Simão Pedro: ‘Bem-aventurado és tu, Simão, filho de João, porque não foram carne e sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai, que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus, e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus”.

Lc 22,31s: “Simão, Simão, eis que Satanás pediu insistentemente para vos peneirar como trigo; eu, porém, orei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça. Quando te converteres, confirma teus irmãos”.

Jo 21,15-17: “Jesus disse a Simão Pedro: ‘Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes?’ Ele lhe respondeu: ‘Sim, Senhor, tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: ‘Apascenta os meus cordeiros’. Uma segunda vez, Jesus lhe disse: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ – ‘Sim, Senhor’, disse ele, ‘tu sabes que te amo’. Disse-lhe Jesus: ‘Apascenta as minhas ovelhas’. Pela terceira vez, disse-lhe: ‘Simão, filho de João, tu me amas?’ Entristeceu-se Pedro, porque pela terceira vez lhe perguntava Tu me amas?’ E lhe disse: ‘Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo’. Jesus lhe disse: ‘Apascenta as minhas ovelhas’“.

Sobre o primado de Pedro nos escritos do Novo Testamento e na história da Igreja nascente, ver PR 375/1993, pp. 338-344; PR 13/1959, pp. 9-20.

Detenhamo-nos agora de modo particular sobre as definições pontifícias.

2. O SIGNIFICADO DE UMA DEFINIÇÃO PONTIFÍCIA

1. Tenha-se consciência, antes do mais, de que uma definição papal nunca é imposição brusca ou repentina de alguma sentença. As definições representam geralmente o termo final de um processo lento, durante o qual uma verdade contida no depósito tradicional da Revelação vai aflorando plenamente à consciência da hierarquia sacerdotal e dos fiéis em geral. Em outros termos: as definições não são senão a formulação explícita e solene de uma maneira de ver já implicitamente existente na Cristandade desde os tempos de Cristo. E o motivo pelo qual se dá essa formulação solene é geralmente o surto de alguma heresia que tente negar ou obliterar a sentença em foco. As definições pontifícias, por conseguinte, têm sempre caráter extraordinário, excepcional. Quanto ao magistério ordinário da Igreja, ele se exerce pela pregação unânime do episcopado unido ao sucessor de S. Pedro, o Papa. Donde se vê que não é necessário, seja uma verdade solenemente definida pelo Sumo Pontífice, para que pertença ao depósito da fé; basta, para isto, tenha sido sempre e em toda a parte professada pelos cristãos: quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est, hoc est etenim vere proprieque catholicum. – O que todos em toda parte e sempre acreditaram, isso é verdadeira e propriamente católico, dizia Vicente de Lerins em meados do séc. V.

Das noções acima também se depreende que não se “criam” dogmas na Igreja. Assim como num organismo vivo não nasce nem se cria algum órgão da noite para o dia, mas, ao contrário, qualquer fenômeno somático é expressão da estrutura e da vitalidade permanentes do indivíduo, assim também na Igreja não se praticam inovações de estrutura; ao contrário, qualquer afirmação autêntica dos cristãos não é senão o desdobramento do depósito da Palavra e da Vida que Cristo colocou em seu Corpo Místico e que Ele conserva sob a assistência do Espírito Santo. Nunca se poderá inculcar demais que a Igreja não é simplesmente uma escola, muito menos uma Câmara Legislativa, mas um organismo vivo, o Corpo de Cristo prolongado na terra, Corpo onde tudo se processa segundo as leis da vida, ou seja, passo por passo, homogeneamente, mediante a colaboração de membros superiores e membros inferiores.

2. Voltando a focalizar diretamente as definições papais, observaremos que três condições devem ser necessariamente preenchidas para que alguma proposição do Romano Pontífice tenha a autoridade de sentença infalível:

1) Requer-se que o Papa fale “ex-cathedra”, isto é, como Pastor e Mestre dos cristãos, não como doutor particular.

Não há, porém, trâmite prescrito para o pronunciamento do Pontífice. Não se exige, portanto, que o Santo Padre, antes de se definir, consulte algum concílio, pois este requisito suporia que o concílio possa exercer influência restritiva sobre a autoridade papal ou esteja acima do Papa no governo da SantaIgreja[3].

2) O objeto da definição infalível são apenas proposições de fé e de moral, isto é, normas relativas ou à crença ou à conduta dos cristãos neste mundo.

3) É necessário outrossim que o Sumo Pontífice intencione proferir sentença definitiva sobre o assunto focalizado.

Somente tal sentença definitiva goza do privilégio da infalibilidade. Este não se estende nem aos argumentos previamente apresentados para fundamentar a definição nem às conclusões que desta decorram.

Quanto aos sinais pelos quais se pode reconhecer uma definição infalível, deve-se dizer que não há fórmula de redação obrigatória. Basta quê o Pontífice manifeste explicitamente sua intenção de declarar alguma doutrina como pertencente ao depósito da fé ou como contrária a este. Os termos habitualmente usados são: “definimus, auctoritate apostolica definimus…” ou “definitive damnamus et reprobamus, auctoritate Dei et beatorum apostolorum Petri et Pauli damnamus et reprobamus…”.

Há casos, porém, em que o documento pontifício é redigido de tal modo que a simples análise dos termos não permite aos teólogos dizer se estão diante de alguma definição “ex-cathedra” ou não. Em tais circunstâncias, será lícito julgar que não se trata de sentença obrigatoriamente imposta à fé dos cristãos, pois ensina a Moral: “Non est imponenda obligatio de qua certo non constat.Não se deve impor obrigação de que não conste com certeza”. Todavia, mesmo em tais casos, pode haver para os cristãos grave dever de crer na proposição focalizada, dever decorrente de outra fonte, isto é, do ensinamento comum dos Sumos Pontífices ou do episcopado.

É o que se dá, por exemplo, quando se examina a encíclica Arcanum do Papa Leão XIII (10 de fevereiro de 1880). Este documento professa a instituição divina do casamento, a indissolubilidade do mesmo, assim como a autoridade integral e exclusiva da Igreja sobre o matrimônio cristão. A redação das frases, porém, não permite dizer que tais doutrinas estejam aí solenemente definidas; não obstante, a todos os cristãos incumbe estrito dever de as aceitar, porque são verdades ensinadas pelo magistério universal e tradicional da Igreja. – O mesmo se diga da encíclica Providentissimus Deus (18 de novembro de 1893), em que o mesmo Pontífice afirma a noção católica de inspiração bíblica, assim como a veracidade de texto sagrado. S. Santidade, embora não tenha aí usado as expressões características de uma definição solene, incutiu verdades que, em vista do ensinamento comum da Igreja, são obrigatórias para todos os fiéis.

Destas observações se depreende quão pouco a Igreja ou os Papas fazem questão de definir dogmas! Qualquer definição é sempre algo de extraordinário no seio da Igreja.

Feitas estas ponderações, examinemos o catálogo dos documentos pontifícios que são geralmente tidos como portadores de definição infalível.

3. A LISTA DAS DEFINIÇÕES PONTIFÍCIAS

De acordo com a ordem cronológica, eis a série dos documentos:

1) Em 449, a carta do Papa S. Leão Magno a Flaviano, bispo de Constantinopla, expunha com autoridade a sã doutrina referente ao mistério da Encarnação: em Cristo há uma só Pessoa (a Divina) e duas naturezas (a Divina e humana); cf. Denzinger-Schönmetzer, Enchiridion Symbolorum, Definitionum et Declarationum de rebus fidei et morum[3] n.º 296-299. Esta carta foi enviada pelo Papa à assembléia geral do Concilio ecumênico de Calcedônia em 451 no intuito de dirimir, uma vez por todas, as dúvidas teológicas concernentes ao assunto. Os Padres conciliares consideraram o documento como definitivo e estritamente obrigatório para todos os fiéis. A tradição católica, em particular a profissão de fé do Papa S. Hormisdas (datada de 517; cf. DS 363-365), sempre reconheceram autoridade máxima a tal documento.

A controvérsia assim rematada por S. Leão Magno é a seguinte:

Desde os inícios da era cristã, perguntava-se com o podia Cristo ser simultaneamente Deus e homem. A primeira tentativa de solução foi a dos Docetas no séc. II, os quais ensinavam que o Salvador não fora verdadeiro homem, pois não tivera senão uma aparência de corpo humano (dokéo, parecer, em grego). – Tal solução não tendo conseguido implantar-se, no séc. V propôs-se outra fórmula: Nestório, ‘Patriarca de Constantinopla, asseverava que Cristo era tão realmente Deus e homem que nele havia duas Pessoas (a Divina e a humana) e duas naturezas (a Divina e a humana). Sabemos que em linguagem técnica “natureza” vem a ser a essência ou a estrutura de um ser, ao passo que “pessoa” é o sujeito consciente ou o “Eu” que age por meio de determinada natureza.

A sentença de Nestório, admitindo duas pessoas ou dois” Eu” em Cristo, cindia a unidade do Salvador; foi, por isto, rejeitada no Concílio de Éfeso (431). – Tomou vulto então, à guisa de reação contra o erro condenado, a teoria oposta, propugnada por Eutiques, de Constantinopla, e Dióscoro de Alexandria: em Cristo haveria uma só natureza (a natureza divina, a qual teria absorvido a natureza humana). Tal era a doutrina do Monofisitismo… Pois bem; S. Leão Magno rejeitou esta tese como contraditória ao genuíno conceito de Encarnação, asseverando em 449 haver em Cristo uma só Pessoa (ou um só “Eu”), a Pessoa Divina, a qual se manifestava por duas autênticas naturezas (a Divina e a humana) não mutiladas nem confundidas. Assim punha-se fim a uma etapa importante da Cristologia.

2) Em 680 a carta do Papa S. Agatão “aos Imperadores” afirmava, também em termos definitivos, haver em Cristo duas vontades distintas, a Divina e a humana, sendo, porém, que a vontade humana ficava em tudo moralmente submissa à vontade divina; cf. DS 547s.

Como se vê, o Pontífice reprimia, em última análise, uma modalidade nova de Monofisitismo: o Monotelitismo, que afirmava em Cristo haver unicamente a vontade divina. O documento foi enviado autoritativamente pelo Papa à assembléia do Concílio de Constantinopla III (680/81), a qual aceitou com aplausos a sentença de Roma, proclamando que Pedro acabara de falar por Agatão. – De então por diante na história, não haveria mais sérias dúvidas sobre a união do Divino e do humano em Cristo.

3) Em 1302, a bula Unam Sanctam do Papa Bonifácio VIII é tida como portadora de definição dogmática em sua parte final, onde o Pontífice “declara, afirma, define e pronuncia (declaramus, dicimus, definimus et pronuntiamus)” que toda criatura humana está sujeita ao Romano Pontífice; cf. DS 875.

Esta sentença há de ser entendida no seu respectivo quadro histórico.

Desde os tempos de S. Agostinho (+430), os cristãos conceberam o ideal de uma “Cidade de Deus”, ou seja, de uma organização civil que fosse toda penetrada pelos princípios do Cristianismo, ficando os interesses e afazeres temporais totalmente subordinados aos espirituais. Dentro desta perspectiva, criou-se em 800, pela coroação de Carlos Magno, o Sacro Império Romano dos Francos, ao qual no séc. X sucedeu o Sacro Império dos Germanos. Sob o Papa Inocêncio III (1198-1216) o ideal tomou vulto assaz concreto. Pouco depois, porém, fizeram-se ouvir no cenário europeu vozes nacionalistas, que tendiam a criar um Estado leigo, independente da religião; um dos primeiros arautos dessa corrente foi o rei Filipe IV o Belo da França (1285-1314). Pois bem: foi contra essa tendência a laicização do Estado que se pronunciou o Papa Bonifácio VIII, afirmando que o poder temporal está subordinado ao espiritual e que, por conseguinte, todas as criaturas humanas, mesmo os monarcas, estão sujeitos ao Vigário de Jesus Cristo na terra.

Tem-se discutido a respeito da mente do Pontífice na Bula Unam Sanctam. Em qualquer caso, interpretar-se-á a sentença final (cujos dizeres são assaz gerais) no sentido da chamada potestas indirecta”, não no da “potestas directa”; o que quer dizer: o Romano Pontífice tem jurisdição sobre toda e qualquer criatura humana “ratione peccati”, isto é, na medida em que as atividades de determinada pessoa dizem respeito à vida eterna; foi, com efeito, a Pedro e aos sucessores de Pedro que Cristo confiou as chaves do Reino dos céus. Não pertence à missão dos Papas interferir na técnica administrativa dos governos civis.

4) Em 1336, a Constituição Benedictus Deus de Bento XII definia que, logo após a morte corporal, as almas totalmente puras são admitidas à contemplação da essência de Deus face a face; cf. DS 1000.

Esta declaração se deve ao fato de que alguns cristãos tanto estimavam o dogma do Corpo Místico que dificilmente concebiam pudessem algumas almas atingir a sua felicidade consumada, enquanto outras ainda lutavam na terra; em conseqüência, afirmavam que a visão beatífica só seria outorgada no fim dos tempos, isto é, após a ressurreição da carne e o juízo universal. – Contra este parecer, a fé cristã formulada por Bento XII de acordo com vários textos da S. Escritura (d. Lc 23,43; Jo 17,24; Hb 8,175; 10,19s; 1Cor 13,8s; 2Cor 5,6s; FI1, 23), afirma que, logo após a morte corporal, se dá o juízo particular, entrando, a seguir, as almas na posse da sua sorte definitiva.

5) Em 1520, a Bula Exsurge Domine de Leão X condenava 41 proposições de Lutero como heréticas; cf. DS 1451-1492.

6) Em 1653 a Constituição Apostólica Cum occasione de Inocêncio X reprovava as cinco seguintes proposições extraídas da obra “Augustinus” de Cornélio Jansênio, tachando-as de heréticas:

1. Há preceitos de Deus que, vistas as exíguas energias do homem, não podem ser cumpridas por justos que os desejem observar e se esforcem por consegui-lo. A esses justos falta também a graça, que tornaria possíveis tais preceitos.

2. No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir à graça interior.

3. Para merecer e desmerecer no estado da natureza decaída, não se requer liberdade que exclua necessidade (interior); basta a liberdade que exclua coação (exterior).

4. Os Pelagianos admitiam a necessidade da graça interior preventiva para cada ato particular, mesmo para o início da fé; eram hereges por asseverarem que essa graça era tal que a vontade podia ou resistir-lhe ou obedecer-lhe.

5. É semipelagiano dizer que Cristo morreu ou derramou o seu sangue por todos os homens sem exceção” (DS 2001-2207).

“Pelagianos” e “Semipelagianos” foram hereges dos séc. V/VI que acentuaram exageradamente as possibilidades da natureza humana no tocante à salvação eterna.

O Jansenismo, ressentindo-se dos debates excitados por Lutero sobre as conseqüências do pecado original, nutria um conceito pessimista da natureza humana, julgando-a escravizada à concupiscência e ao pecado; em conseqüência, admitiam que o homem só pode praticar o bem em virtude de irresistível influxo da graça divina. O pessimismo jansenista ainda era acentuado pela tese de que Cristo não remiu todos os homens, mas apenas os ‘predestinados. – Como se vê, tais proposições são totalmente alheias à genuína mensagem do Evangelho, que visa não a abater, mas a soerguer o homem pecador, fazendo que os cristãos considerem mais a Misericórdia do Salvador do que a própria miséria. É o que explica a condenação proferida por Inocêncio X.

7) Em 1687, a Constituição Apostólica Caelestis Pastor de Inocêncio XI condenou como heréticas 68 proposições quietistas de Miguel de Molinos (+1696); cf. OS 2201-2269.

O Quietismo era uma tendência mística que fazia coincidir a perfeição espiritual com tranqüilidade e passividade da alma tais que o cristão não desejaria mais a sua bem-aventurança eterna, nem a aquisição da virtude; qualquer tendência nele estaria extinta. A alma colocada nesse estado de aniquilamento não pecaria mais, mesmo que por sua conduta externa parecesse violar os mandamentos de Deus ou da Igreja; ser-lhe-iam desnecessárias orações vocais, práticas de penitência e resistência às tentações.

Evidentemente, tais idéias contradizem à genuína mente cristã, que S. Agostinho tão bem exprime na fórmula: “Deus, que te criou sem ti, não te salva sem ti”. O ideal do cristão não é propriamente a apatia estóica, ou seja, a ausência de todo e qualquer afeto sensível, mas, sim, a metriopatia; ou seja, o domínio sobre os afetos tal que possa servir à vida em graça.

8) Em 1699, a Constituição Cum alias de Inocêncio XII condenava 23 proposições de François de Salignac Fénelon, extraídas da obra “Explications des maximes des Saints sur la vie intérieure”; cf. DS 2351-2374. As sentenças pretendiam renovar o Quietismo, apresentando-o qual modalidade de puríssimo amor a Deus.

9) Em 1713, a Constituição Unigenitus de Clemente XI condenou 101 afirmações do livro “Réflexions morales” de Pascásio Quesnel (+1719); cf. DS 2390-2502. Era de novo o Jansenismo, com suas concepções pessimistas, que o Sumo Pontífice assim denunciava.

Embora as escolas jansenistas tenham perdido em breve a sua voga, a mentalidade jansenista até os últimos decênios ficou, até certo grau, impregnada no espírito de muitos cristãos, alimentando uma piedade intimidada, alheia aos sacramentos e, por isto, anêmica. Justamente em plena crise jansenista se deram as aparições do Sagrado Coração de Jesus (1673-1675), que, sob forma simbólica, queriam lembrar ao mundo que Deus é o Amor, e o Amor que se fez companheiro dos homens.

10) Em 1794, a Constituição Auctorem Fidei de Pio VI visava a 85 teses heréticas promulgadas em 1786 pelo Sínodo de Pistoia (Toscana); cf. DS 2600-2700.

As idéias dos conciliares de Pistoia não eram senão a expressão extremada do nacionalismo e do despotismo de Estado que haviam começado a tomar vulto nos tempos de Filipe IV o Belo da França (ver o documento n.º 3 da presente lista). No fim do séc. XVIII esse nacionalismo se havia apoderado das cortes européias em geral, levando os soberanos católicos a pretender criar Igrejas regionais, mais ou menos independentes do Sumo Pontífice; tal tendência tomou vulto na França de Luís XIV, em Portugal do marquês de Pombal, na Espanha de Aranda e Florida Branca, na Áustria de José II e, de maneira especial, no Grão-Ducado da Toscana, cujo titular, o Grão-Duque Leopoldo, era irmão de José II. Leopoldo obteve o apoio do episcopado da Toscana, chefiado por Cipião Ricci, bispo de Pistoia, para 57 artigos que visavam a profundas reformas da estrutura e da disciplina da Igreja, em grande parte inspiradas por idéias de Jansênio e de Quesnel: entre outras medidas, preconizavam a subordinação da Igreja ao Estado e a quase absoluta independência dos bispos em relação ao Sumo Pontífice; a abolição da devoção ao S. Coração de Jesus, das procissões, das imagens, da praxe das indulgências, dos honorários de S. Missa e de serviços religiosos em geral; apregoavam a redução das Ordens e Congregações Religiosas a um só tipo norteado pelo exemplo de Port-Royal (mosteiro jansenista próximo a Paris); queriam outrossim a celebração da Liturgia em vernáculo, o que em si nada tem de reprovável, mas era contingentemente associado a reivindicações heréticas (isto foi suficiente para que o postulado da Liturgia em vernáculo se tornasse, mais uma vez, suspeito aos olhos de Roma, como se tornara suspeito quando os reformadores o formularam no séc. XVI). – Antes mesmo que Pio VI condenasse as proposições de Pistoia, já o povo toscano havia mostrado sua veemente indignação contra elas, de tal modo eram alheias à genuína tradição cristã; o próprio bispo Ricci submeteu-se ao alvitre de Pio VI.

11) Em 1854, a bula Ineffabilis Deus de Pio IX definiu o dogma da Imaculada Conceição de Maria: dizia o Pontífice, apelando para testemunhos da Escritura e da Tradição, que a Virgem Santíssima, desde o primeiro instante de sua conceição, foi preservada do pecado original, ou seja, da nódoa com que nascem todos os filhos de Adão; isto se deu por aplicação antecipada dos méritos do Redentor a fim de que a criatura que devia ser mansão do Verbo Encarnado, jamais ficasse sujeita ao hediondo império de Satanás e do pecado (Maria, portanto, não deixa de ser tributária ao Redentor; ela foi remida). Cf. DS 2803s.

Antes da definição do dogma da Imaculada Conceição, perguntavam alguns teólogos que motivo havia para que o Sumo Pontífice se pronunciasse em tom solene e extraordinário sobre uma proposição que era pacificamente professada pelos fiéis católicos. A tal questão foi dada a seguinte resposta: a afirmação de alguma verdade concernente a Maria equivale sempre à afirmação sucinta de toda a dogmática cristã; com efeito, em Maria a fraqueza do homem e a graça de Deus, a Encarnação, a Redenção, o mistério da Igreja e a glória final se acham compreendidos de maneira estupenda. Em conseqüência, uma definição mariológica em meados do século passado teria o valor de uma profissão compêndios de fé cristã frente ao racionalismo e ao materialismo que pesavam sobre a cultura da época. Tal foi o sentido profundo do pronunciamento de Pio IX.

12) Em 1950, o Papa Pio XII em sua Constituição Munificentissimus Deus definiu o dogma da Assunção Corporal de Maria: a Mãe de Deus, ao deixar este mundo, foi, sim, glorificada em corpo e alma, sem conhecer a deterioração do sepulcro. Esta proposição está intimamente ligada com o dogma da Imaculada Conceição: na verdade, se Maria nunca esteve sujeita ao pecado, compreende-se que não tenha ficado sob o império da morte, a qual não é senão uma conseqüência do pecado (Pio XII, porém, não quis definir a questão até hoje aberta: terá Maria ao menos atravessado a morte antes de ser glorificada ou haverá sido preservada mesmo de morrer, de modo a passar sem hiato, desta vida para a glória celeste?). Cf. DS 3900­-3904.

A crença na Assunção corporal de Maria não sofria contestação antes de ser definida; a definição, porém, foi justificada por motivos análogos aos que acima indicamos: o presente século continua sujeito às influências do racionalismo e do materialismo; principalmente nos últimos decênios a matéria ou o corpo do homem têm sido lamentavelmente vilipendiados pelo libertinismo dos costumes e pelos morticínios coletivos (bombardeios) das grandes guerras. Nesta época, portanto, a afirmação da Assunção corporal de Maria lembrava ao mundo o destino transcendente do corpo humano e o valor que o Criador a este quis atribuir.

Os teólogos têm perguntado se algum dos documentos dos Pontífices recentes contrários ao racionalismo e ao modernismo (a enc. Quanta cura e o Silabo de Pio IX, a enc. Pascendi e o decreto lamentabili de S. Pio X) não gozam da autoridade de declarações infalíveis. Examinando, porém, o teor preciso desses textos, assim como as circunstâncias em que se originaram, a maioria dos comentadores é inclinada a crer que os dois mencionados Papas, ao promulgar esses documentos, não intencionaram fazer uso de sua prerrogativa de infabilidade doutrinária, embora não reste dúvida de que tenham interpretado a mente de Cristo e da Igreja nos termos mais autênticos possíveis, merecendo por isto plena aquiescência por parte dos fiéis.

Nos últimos decênios, tem-se considerado com grande interesse a Encíclica Humane Vitae (1968) de Paulo VI, que rejeita a contracepção artificial e apregoa os meios naturais de controle da natalidade. Como não usa a fórmula clássica “Declaramos e definimos”, há quem julgue que não é documento infalível e, portanto, não merece obediência. A esta posição fazemos duas observações:

1) mesmo que não recorra aos termos de uma definição solene, a Encíclica Humanae Vitae é um documento do magistério ordinário da Igreja, ao qual os fiéis católicos devem o respeito recomendado pelo Concílio do Vaticano II na Constituição Lumen Gentium n.º 25:

“Religiosa submissão da vontade e da inteligência deve, de modo particular, ser prestada ao autêntico Magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ex-cathedra. E isto de tal modo que seu magistério supremo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e vontade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da índole dos documentos ou da freqüente proposição de uma mesma doutrina, ou de sua maneira de falar”.

2) Paulo VI, ao formular a doutrina da Encíclica Humanae Vitae, sa­bia não estar senão transmitindo preceitos da lei natural, segundo a qual o amor humano é, por si, unitivo e fecundo e, por isto, não deve ser artificialmente privado da sua fecundidade. Em conseqüência, a Humanae Vitae goza da autoridade da própria lei natural, que é a lei de Deus.

Algo de semelhante se diga a respeito da Encíclica Veritatis Splendor: é documento pontifício, que merece acato como tal e – mais ainda – rea­firma a lei natural frente a tendências subjetivistas de conceber a Mora­lidade.

4. CONCLUSÃO

Eis os casos em que, conforme ensinam os teólogos, os Papas, no de­correr da história, fizeram uso de seu magistério infalível para formular alguma sentença dogmática. Doze vezes em vinte séculos!… Tão exígua cifra talvez surpreenda não poucos leitores, pois, quando se fala da infali­bilidade pontifícia, facilmente se tem a impressão de que os católicos vivem num regime de imposições procedentes do capricho de um mestre humano. Tal impressão, como se vê, está longe de corresponder à realidade.

Não queremos dizer, é claro, que os dogmas cristãos se reduzem às proposições atrás enunciadas. Também não negamos que há definições emanadas de Concílios Ecumênicos. O que nos interessava, porém, na redação deste artigo, era apenas mostrar o sentido exato de uma definição papal: esta (o mesmo se pode dizer também de uma definição conciliar) é sempre algo de extraordinário e esporádico, suscitado pelas necessidades do povo de Deus posto em perigo de perder a sua fé; uma definição so­lene é sempre a resposta a um problema, a uma dúvida. Nas circunstân­cias normais de sua história, o povo de Deus professa a fé que ele recebeu de Cristo e dos Apóstolos e que vai sendo pacificamente transmitida de geração a geração , sob a tutela do “episcopado, que o Espírito Santo esta­beleceu para apascentar a Igreja de Deus” (cf. At 20,28).

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NOTAS:

[1] Há preceitos de Deus que, vistas as exíguas energias do homem; não podem. ser cumpridos por justos que os desejem observar e se esforcem por consegui-lo. A esses justos falta também a graça, que tornaria possíveis tais preceitos.

[2] No estado da natureza decaída, o homem nunca pode resistir à graça interior.

[3] Será citado pela sigla DS.