Papa: o primado de Pedro (I)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 480/2002)

 

O PRIMADO DE PEDRO

Em síntese: Em vista de repetidos ataques ao primado do Papa, o presente artigo percorre os fundamentos bíblicos e os testemunhos históricos que comprovam a autenticidade desse primado. A consciência do alcance do ministério petrino foi desabrochando aos poucos na Igreja, estimulada por situações em que aparecia com evidência a necessidade de um Pastor Supremo, “servo dos servos de Deus”.

***

A fé católica ensina que ao Bispo de Roma (Papa) toca, na Igreja, a primazia não somente honorífica (sem efeitos de governo) nem apenas presidencial (o presidente recebe da sociedade a que ele preside, os respectivos poderes de governo; o Papa, ao contrário, não recebe dos fiéis nem de algum concílio a sua autoridade), mas uma primazia de jurisdição, a qual implica faculdades supremas e independentes de algum concílio, poderes que fazem do bispo de Roma o Pastor da Santa Igreja inteira.

Quais seriam os fundamentos de doutrina tão importante? É o que se proporá abaixo (5 1), a fim de se tecerem por fim algumas reflexões sobre o título “Igreja Romana” (5 2).

Os fundamentos da doutrina na Revelação cristã

Antes de se examinarem os dados positivos da Revelação, impõe-se importante observação. As verdades cristãs se acham contidas nas fontes da Revelação geralmente sob forma compendiosa, de sorte que algumas delas só no decorrer dos tempos foram sendo explicitadas e formuladas em termos bem definidos. Em geral, foi o surto de heresias que deu ocasião a que as proposições da fé recebessem sua expressão clara e burilada.

Ora o que se dá com vários dogmas, verifica-se de maneira frisante com a doutrina do primado romano. Mais talvez do que se registra com outras verdades de fé, a afirmação desta e de todas as suas conseqüências esteve sujeita à ação do tempo; só aos poucos, segundo as necessidades da Igreja, é que os Papas foram exercendo as faculdades primaciais já expressas, sem dúvida, embrionariamente nos textos evangélicos. “Não seria razoável, portanto, rejeitar o dogma católico sob pretexto de que o primado do bispo de Roma não se exercia nos primeiros séculos com a mesma amplidão e pelos mesmos meios que o caracterizam hoje em dia… Para que o dogma seja válido, bastará que se possam apontar desde as origens do Cristianismo, já nos primeiros documentos da Revelação, os traços essenciais desse primado, ou seja, o grão de mostarda que se tornou grande árvore, a bolota que deu origem ao pujante carvalho, a criança no berço que veio a ser o homem feito de épocas posteriores” (M. Jugie. Lê schisme byzantin 48s).

Feita esta observação, procuremos agora.

Os fundamentos bíblicos do primado

Dentre os textos do S. Evangelhos, vários há que atribuem a Pedro uma posição privilegiada, ao passo que três lhe outorgam autêntico primado de jurisdição; por fim outras passagens indicam o exercício dessa preeminência por parte do Apóstolo.

A posição privilegiada de Pedro

Nas solenes ocasiões da ressurreição da filha de Jairo (Mc 5, 37), da Transfiguração (Mt 17, 1-8; Mc 9, 1-8; Lc 9, 28-36) e da agonia no horto das Oliveiras (Mt 26, 37; Mc 4, 23), Jesus admitiu apenas a companhia de três discípulos, dos quais o S. Evangelho menciona em primeiro lugar Pedro.

No catálogo dos Apóstolos, quatro vezes ocorrente no Novo Testamento (Mt 10, 2-4; Mc 3, 16-19; Lc 6, 13-16; At 1, 13), enquanto varia a colocação dos demais, Pedro é sempre nomeado antes dos outros, sendo que S. Mateus sublinha explicitamente: “primeiro Simão, cognominado Pedro”. O título de primeiro não parece significar idade mais antiga nem prioridade de vocação (não se poderia provar nem uma nem outra coisa; André tornou-se mesmo discípulo de Jesus antes de Pedro; cf. Jo 1, 40-42), mas indica certamente preeminência ou maior dignidade (cf. Mt 20, 27; Mc 12, 28-31; Lc 15, 22, textos em que a palavra primeiro ocorre abertamente não para indicar cronologia, mas para designar principalmente). É o que o próprio Loisy, apesar do seu liberalismo, não deixa de reconhecer: “Entre os doze, havia um que era o primeiro, não somente pela prioridade de sua conversão ou pelo ardor de seu zelo, mas por uma espécie de designação do Mestre” (LÉvangile et 1’Église 134).

Este desígnio de Jesus se manifesta ainda nas múltiplas provas de deferência que o Senhor mesmo deu a Pedro: Cristo pagou o tributo por Pedro (Mt 17, 24-27); fê-lo caminhar sobre as águas (Mt 14, 27-30); no dia da ressurreição apareceu-lhe em particular (Lc 24, 34); antes de subir aos céus, predisse a Pedro o modo como morreria (Jo 21, 18).

O próprio Pedro manifestou consciência de sua posição peculiar, pois em geral era ele quem falava em nome de todos: Mt 14, 28; 15; 16 16.22; 17, 4; 18, 21; 19, 27; 26, 33; Mc 8, 29; 10, 28; 11, 21; 14, 29; Lc 8,45; 9, 20.33; 12,41; 18, 28; 22, 31; Jo 6, 68; 13,6-10.36.

Não se explicariam os casos de preeminência de Pedro simplesmente pelo caráter impetuoso deste Apóstolo, sempre pronto a tomar a dianteira, pois sabemos que os discípulos protestaram contra as pretensões arrogantes dos filhos de Zebedeu (cf. Mt 20, 24), nunca, porém, contra as atitudes de Pedro; supõe-se, portanto, que estas tinham fundamento objetivo, outorgado pelo Senhor mesmo.

Todavia, contra a concessão de prerrogativas a Pedro, lembram alguns exegetas a maneira forte como Jesus rejeitou as tendências dos Apóstolos à preeminência (cf. Lc 22, 24-27). –

Não há dúvidas; Jesus condenou as discussões dos discípulos concernentes à primazia, inculcando-lhes a humildade; com isto, porém, não condenou a autoridade (como se verá adiante), mas apenas os espíritos autoritários, prepotentes; a autoridade, Jesus a concebeu, sim, como serviço e dedicação (cf. Jo 13, 4-16; Mt 20, 25-28; Mc 10, 41-45; Lc 22, 25-27).

Muito significativa, aliás, é a cena do primeiro encontro de Jesus com Pedro: o Senhor mudou o nome de Simão para Cefas (= Pedro); cf. Jo 1, 42. Ora a história do Antigo Testamento só refere dois casos em que Deus tenha trocado o nome de uma criatura; em ambos, porém, mudou-o para conferir-lhe solene missão (a Abraão, em Gn 17, 5; a Jacó, em Gn 32, 29). Também a Pedro Cristo quis confiar uma missão, que Jesus mesmo formulou em três passagens: Mt 16, 17-19; Lc 22, 30-32; Jo 21, 15-18.

A missão confiada a Pedro

Mt 16,17-19. Os críticos não hesitam sobre a autenticidade desta passagem, que não falta em manuscrito algum nem nas traduções e citações do Evangelho de Mt feitas na antigüidade.

Que quer dizer o Senhor por esses versículos tão saturados de expressões semíticas?

Jesus em primeiro lugar promete construir a Igreja, ou seja, a sociedade dos seus discípulos, sobre um fundamento que será Rocha, fundamento indestrutível. Essa rocha, o Senhor a identifica com Pedro pessoalmente, e não com a confissão de fé de Pedro nem com o grupo dos doze Apóstolos. Com efeito, note-se como todo o contexto versa em torno da pessoa do Apóstolo: é a Pedro diretamente que Jesus dirige as palavras: “Bem-aventurado és tu…, te revelou… Eu te digo…”. Foi o nome de Pedro que Cristo mudou e é a esse nome mudado que Ele alude, interpretando-o, consoante o costume bíblico, como sinal de uma tarefa nova que para o futuro incumbiria ao Apóstolo: “Simão, filho de Jonas… Pedro (Pedra)…”.

Como o rochedo sustenta todo o edifício, comunicando-lhe sua firmeza, assim no plano moral o que sustenta a sociedade, comunicando-lhe coesão, é a autoridade. Ora tal há de ser o papel de Pedro na Igreja (vê-se que não é função acidental, mas estrutural).

Continuando, diz o Senhor que a Casa ou a Igreja fundada sobre Pedro será continuamente assaltada pelas “portas do inferno”. As portas, segundo a linguagem semita, designam no caso o poderio (pois era às portas da cidade que se colocavam a força armada outrora). O inferno (o cheol dos judeus, o Hades dos gregos) significa a Morte ou, conforme o vocabulário judaico contemporâneo a Cristo, o Mal. Por conseguinte, indefectível será a Igreja arquitetada sobre Pedro, pois “o Mal não prevalecerá com todo o seu poderio”.

Outra prerrogativa se associa à de “Pedro-Fundamento”: o Apostolo terá as chaves do reino, isto é, a administração de todas as coisas no palácio do Rei, na Igreja de Cristo (as chaves são o símbolo da autoridade, conforme Is 22, 22; Ap 3, 7s; 9, 1; 20, 1).

A mesma prerrogativa é expressa pela dupla função de “ligar e desligar” (em nossa linguagem, “proibir e permitir”), função que Pedro exercerá validamente na terra de modo a ser confirmada pelo Pai do Céu (“tudo que ligares na terra…”).

Donde se conclui que em Mt 16, 18s Jesus prometeu ao Apóstolo São Pedro o poder de jurisdição sobre toda a Santa Igreja.

Dir-se-á talvez, em contrário, que o Novo Testamento só conhece um fundamento da Igreja: o Cristo Jesus, mencionado em “I Cor 3, 11. -Observe-se contudo que o Senhor que disse ser a luz do mundo (cf. Jo 8, 12; 9, 5; 12, 46), atribuiu o mesmo título aos seus discípulos (cf. Mt 5,14); por meio de Pedro, e mais fundo do que Pedro, Cristo fica sendo a Rocha, o fundamento invisível da Igreja. É esse mesmo Jesus que “possui a chave de Davi; que abre, de modo que ninguém fecha; que fecha, de sorte que ninguém abre” (Ap 3, 7).

Em Cristo e em Pedro, portanto, residem análogos poderes (designados pelas mesmas metáforas); é de Cristo que eles dimanam para o Apóstolo, de sorte que este vem a ser o Vigário ou Representante de Jesus na terra.

Jo 21, 15-17. O primado prometido em Mt 16, 15-19 foi realmente outorgado após a ressurreição, segundo Jo 21. Cristo confiou então a Pedro o pastoreio de todo o seu rebanho, incluindo neste mesmo os demais Apóstolos. A imagem do Pastor é clássica na S. Escritura para designar o Messias e a sua obra (cf. Mt 2, 13; 4, 6s; 5, 3; Sf 3, 19; Jr 23, 3; 31, 10; Is 40, 11; 49, 9s; Ez 24, 7-24; 37, 23-25; Zc 11, 7-9; Mt 18, 12; Lc 15, 4; Jo 10,11-16); ora, confiando a Pedro o encargo de Pastor, Cristo o constituía naturalmente seu Vigário na terra, e Vigário dotado de jurisdição suprema, ostensiva mesmo aos demais ministros e legados de Deus.

Lc 22, 31 s. Um aspecto da suprema função pastoral de Pedro é especialmente realçado por Jesus na véspera de sua Paixão: Cristo então declarou que Satanás estava para assaltar a fé de todos os Apóstolos, mas que Ele, o Senhor, havia orado por Pedro, entendendo beneficiar os demais Apóstolos por meio do primeiro; a este conseqüentemente o Senhor dava logo depois o encargo de corroborar a fé de seus irmãos; o que quer dizer: o papel que Jesus exerceu em relação a Pedro, Pedro o deveria de seu modo exercer em relação a todo o rebanho, mesmo em relação aos demais Apóstolos.

O exercício da preeminência após a Ascensão de Cristo

Logo após a partida definitiva do Senhor, aparece o Apóstolo Pedro na chefia do grupo de discípulos. Foi ele, por exemplo, quem presidiu à eleição do novo Apóstolo, São Matias (cf. At 1, 15-26);… Quem no dia de Pentecostes se encarregou de fazer a primeira proclamação de Cristo (cf. At 2, 14-36); … Quem, na qualidade de juiz da comunidade cristã, puniu Ananias e Safira (cf. At 5, 1-11. Foi mandado à Samaria com João (cf. At 8,14), porque se julgava que a sua presença de chefe das comunidades cristãs era indispensável para corroborar os fiéis daquela região; a autoridade de Pedro foi decisiva para se admitirem os gentios na Igreja (cf. At 11, 18)…

Os testemunhos se poderiam multiplicar… Limitar-nos-emos a considerar apenas o chamado “incidente de Antioquia” (Gl 2, 11-14). Este episódio ainda vem a ser um testemunho indireto da autoridade do Primaz: Paulo diz ter chamado a atenção de Pedro justamente porque o exemplo deste Apóstolo era de tal modo persuasivo que coagia moralmente os étnico-cristãos a o imitarem ou a observarem a Lei de Moisés: “Se tu, que és judeu, dizia Paulo, vives à maneira dos gentios, e não dos judeus, como forças os gentios a se fazerem judeus?” (Gl 2, 14). A falha de Pedro parece ter consistido em não estar plenamente cônscio da influência que ele exercia ou em não ter percebido que sua condescendência para com amigos, embora fosse legítima, era mal interpretada, perturbando a Igreja inteira. Note-se que, na sua atitude forte, Paulo não disse palavra contra os direitos de S. Pedro a exercer tal influência sobre os fiéis. De tudo isso conclui Loisy que o gesto de S. Paulo “atesta ter sido Simão Pedro o chefe do serviço evangélico, o homem com o qual era preciso entrar em acordo, sob pena de trabalhar em vão” (Lês Évangiles synoptiques 14).

O testemunho da Tradição

O primado de Pedro não podia perecer com a pessoa do Apóstolo, mas devia transmitir-se aos sucessores deste, pois a posição de fundamento outorgada por Cristo a São Pedro toca a estrutura da própria Igreja; se esta deixasse de ter fundamento visível, deixaria de ter um dos traços essenciais que Cristo expressamente lhe quis dar. Por conseguinte, era da vontade de Jesus que a prerrogativa concedida a Pedro se comunicasse perenemente aos sucessores deste.

Ora Pedro morreu como bispo de Roma. Disto se segue que os subseqüentes bispos e Roma são até hoje os detentores da jurisdição universal que o Senhor comunicou ao Apóstolo principal.

Estas proposições dogmáticas são corroboradas por um rápido percurso da história do Cristianismo, a qual ensina que:

De fato, Pedro terminou sua missão como bispo de Roma;

Os sucessores de Pedro sempre manifestaram a consciência de possuir jurisdição sobre a Igreja inteira.

1.2.1. A morte de S. Pedro em Roma

Consideremos primeiramente os testemunhos literários.

a) A estada de Pedro na Cidade Eterna é insinuada já pela primeira carta do Apóstolo, que em 64 foi escrita de Babilônia (5, 13), nome que, conforme o Novo Testamento (cf. Apocalipse), designa a capital pagã do Império Romano.

b) Decênios depois, em 96/98, o bispo de Roma São Clemente escrevia aos Coríntios:

“Lancemos os olhos sobre os excelentes Apóstolos: Pedro, que, por efeito de inveja injusta, sofreu não um ou dois, mas numerosos tormentos, e que, depois de ter dado testemunho, se foi para a glória que lhe era devida. Foi por efeito da inveja e da discórdia que Paulo mostrou o preço da paciência… Depois de ter ensinado a justiça ao mundo inteiro e ter atingido os confins do Ocidente, ele deu testemunho diante daqueles que governavam e assim deixou o mundo, indo-se para o lugar santo… A esses homens… juntou-se grande multidão de eleitos que, em conseqüência da inveja, padeceram muitos ultrajes e torturas, deixando entre nós magnífico exemplo” (5, 3-7; 6, 1).

Conforme a evolução do idioma grego, “dar testemunho” significativa na época de Clemente “atestar com o sangue, sofrer morte violenta”. À menção do martírio de S. Pedro e S. Paulo, Clemente acrescenta a de muitos outros mártires, frisando que todos esses justos deixaram entre nós magnífico exemplo; esse entre nós se refere a Roma, onde Clemente escrevia.

c) Por volta de 107, S. Inácio de Antioquia escrevia aos Romanos:

“Não é como Pedro e Paulo que eu vos dou ordens; eles foram Apóstolos; eu não sou senão um condenado” (Rm 4, 3).

“Tais palavras não equivalem literalmente à frase: São Pedro foi a Roma. Mas, suposto que lá tenha ido, S. Inácio não teria falado de outro modo; suposto que não tenha ido, a frase carece de sentido” (Duchesne, Histoire ancienne de 1’Église l).

d) Entre 165 e 170, o bispo Dionísio de Corinto atestava aos Romanos:

“Tendo vindo ambos a Corinto, os dois Apóstolos Pedro e Paulo nos formaram na doutrina evangélica; a seguir, indo-se para a Itália, eles vos transmitiram os mesmos ensinamentos e por fim sofreram o martírio simultaneamente” (em Eusébio, Hist. Ecl. II 25, 8).

e) No início do séc. III era Orígenes quem escrevia:

“Pedro, finalmente tendo ido para Roma, lá foi crucificado com a cabeça para baixo” (em Eusébio, Hist). Ecl. III).

Deixando os testemunhos literários, que se poderiam prolongar, passemos agora aos da Arqueologia.

Por volta de 200, um presbítero romano chamado Gaio dirigia-se nos seguintes termos a um grupo de hereges:

“Posso mostrar-vos os troféus (túmulos) dos Apóstolos. Caso queiras ir ao Vaticano ou à via Ostiense, lá encontrareis os troféus daqueles que fundaram esta Igreja” (em Eusébio, Hist. Ecl. II 25, 7).

Tais dizeres foram ilustrados pelas recentes escavações feitas em Roma durante dez anos no subsolo da basílica de S. Pedro: encontraram-no vestígio de um mausoléu cristão Dosto em meio a túmulos pagãos ao qual dá acesso uma via que parece ter sido muito freqüentada; junto a esse túmulo numerosas inscrições (graffiti) de visitantes fazem menção do Apóstolo Pedro. No sepulcrozinho de 80 x 80 cm, que os arqueólogos cavaram até tocarem o solo virgem, encontraram ossos humanos dispersos e misturados com terra, que foram cuidadosamente recolhidos; além disto, deram com os destroços de uma urna de mármore fino de 77 x 30 cm… Sem descer ao plano das hipóteses minuciosas, meramente conjeturais, julgam os historiadores que o lugar assim descoberto representa o primeiro local onde foram depositados os despojos mortais de S. Pedro. E com razão assim pensam: no ano de 67, quando morreu este Apóstolo, os cristãos ainda não possuíam seus cemitérios próprios, devendo por isto forçosamente usar cemitérios pagãos; se, pois, no Vaticano S. Pedro foi enterrado em uma necrópole pagã, esta deve ter sido realmente a primeira mansão póstuma do Apóstolo, indicada, aliás, explicitamente pelos testemunhos de Gaio e dos graffiti.

Podem-se observar ainda: no início do séc. IV o Imperador Constantino construiu a basílica de S. Pedro em Roma. Podia ter escolhido para isto, ao lado do lugar que ele tomou, uns terrenos livres, planos, aptos para uma ampla construção (no chamado “Circo de Nero”). Não o fez, porém; mandou construir a basílica no lugar mais incomodo e contra-indicado, tomando um terreno de forte declive, terreno com uma diferença de nível de 13m na direção NE-SO, e já ocupado por uma necrópole (coisa que os romanos costumavam respeitar religiosamente)! Se Constantino assim violou todas as leis de construção e de deferência aos mortos, ele deve ter tido motivo muito sério para tanto, motivo que não pode ser senão a presença, em uma parte desse cemitério pagão, de um túmulo caro a todos os cristãos de Roma: o túmulo de Pedro!

Dada a clareza dos testemunhos da história, os autores, mesmo não-católicos, não costumam em nossos dias contestar a morte do Apóstolo São Pedro em Roma (ninguém, porém, saberia dizer quando chegou Pedro pela primeira vez à Cidade Eterna; nem se insiste na tese de S. Jerônimo, segundo a qual o Apóstolo pregou 25 anos em Roma).

1.2.2. O exercício do primado por parte dos sucessores de São Pedro

Como dissemos, não seria razoável crer que nos primeiros séculos o primado romano se tenha manifestado como hoje. De um lado, as comunicações entre os diversos núcleos cristãos eram difíceis; de outro lado, foi o surto de heresias e desordens que deu ocasião a que a Santa Igreja mostrasse aos poucos a sua estrutura petrina. Como se verá adiante, o primado era atribuído aos pontífices romanos não em virtude da preponderância política de Roma, mas por motivo estritamente religioso.

No fim do séc. I, tendo surgido um litígio entre os fiéis de Corinto, o bispo de Roma, São Clemente, lhes escreveu uma carta autoritativa, chamando-os energicamente à ordem:

“Se alguns não obedecem ao que Deus mandou por nosso intermédio, saibam que incorrem em falta e em perigo muito grave” (c. 69).

A carta terminava anunciando o envio de legados romanos a Corinto, os quais, esperava o Pontífice, haveriam de voltar para Roma levando a notícia da restauração da paz entre os discordantes.

É altamente significativo o fato de que o bispo de Roma, e ele só, tenham intervindo em questões internas da comunidade de Corinto, embora em Éfeso ainda vivesse o Apóstolo São João, e outras comunidades que não a de Roma tivessem talvez relações mais freqüentes e fáceis com Corinto. Leve-se em conta também à deferência que a igreja de Corinto (embora fosse, como a de Roma, fundada por um Apóstolo) prestou ao documento de Roma: a admoestação surtiu o almejado efeito, como se depreende do fato de que em 170 aproximadamente a carta de S. Clemente ainda era habitualmente lida nas reuniões dominicais dos fiéis de Corinto (cf. Eusébio, Hist. Ecl. IV 23, 11).

b) No início do séc. II S. Inácio de Antioquia escrevia aos cristãos de Roma, reconhecendo ser a sua comunidade a mestra de outras: “Não invejastes a ninguém; instruístes os outros”. Também eu quero guardar aquilo que ensinais e preceituais(3, 1). Aos Romanos confiava S. Inácio o cuidado das comunidades da Síria: “Somente Jesus Cristo e a vossa caridade (ágape) exerçam para com elas o papel do bispo” (9,1). Ágape vem a ser, para S. Inácio, o sinônimo de “comunidade cristã” ou de “Igreja” (cf. Trai. 13.1; Esmirn. 12,1; Filad. 11, 2); é este o sentido que o santo bispo parece supor quando diz ser a Igreja de Roma “a que preside à caridade (ágape)” e “a que preside na região dos Romanos” (Rom, prol.). Estas expressões, segundo bons historiadores, significam preeminência em relação às demais comunidades cristãs. O testemunho de Inácio torna-se particularmente significativo desde que se leve em conta que era proferido por um bispo de Antioquia, cidade onde Pedro teve uma de suas primeiras sedes episcopais (cf. Eusébio, Hist. ecl. III 36).

c) Na segunda metade do séc. II registrou-se a controvérsia de Páscoa: um grupo de bispos da Ásia Menor, recusando seguir o Calendário e os costumes vigentes em Roma, assim como nas demais regiões cristãs, foi ameaçado de excomunhão pelo Papa S. Vítor (cf. Eusébio, Hist. Ecl. V 24 9-18). E ninguém contestou ao Pontífice o direito de assim proceder; devia parecer claro a todos que nenhum bispo pode estar em comunhão com a Igreja universal sem estar em comunhão com a própria Roma.

d) S. Irineu (+ 202 aproximadamente) deixou-nos um dos mais eloqüentes testemunhos em favor de Roma:

Tendo afirmado que a verdade se encontra nas comunidades fundadas pelos Apóstolos, continua: “Mas, já que seria demasiado longo enumerar os sucessores dos Apóstolos em todas as comunidades, só nos ocuparemos com uma destas: a maior e a mais antiga, conhecida por todos, fundada e constituída pelos dois gloriosíssimos Apóstolos Pedro e Paulo. Mostraremos que a tradição apostólica que ela guarda, e a fé que ela comunicou aos homens chegaram a nós através da sucessão regular dos bispos, confundindo assim todos aqueles que… querem procurar a verdade onde não se pode encontrar. Com esta comunidade de fato, dada a sua autoridade superior, é necessário esteja de acordo toda comunidade, isto é, os fiéis do mundo inteiro; nela sempre foi conservada a tradição dos Apóstolos” (Adv. Haer. III 3, 2).

Em uma palavra diz S. Irineu: a conformidade com o ensinamento dos sucessores de Pedro é o critério da ortodoxia.

e) Em meados do séc. III S. Cipriano, bispo de Cartago, chamava a cátedra de Roma “cátedra de Pedro, a Igreja principal, donde se origina a unidade sacerdotal (isto é, a unidade dos bispos)! (epist. 55, 14). Contudo S. Cipriano parece não ter tirado as últimas conseqüências destas palavras, pois recusou submeter-se ao Papa S. Estevão no tocante à validade do batismo conferido por hereges.

À medida que nos adiantamos no decorrer dos séculos, vão aumentando em número e significado os textos e fatos que atestam o primado de Roma. Visando a brevidade, limitar-nos-emos aqui a recordar que, por ocasião dos litígios teológicos verificados do séc. IV em diante, a Sé de Roma foi geralmente tida como supremo tribunal de apelo, donde os teólogos e os simples fiéis, tanto do Ocidente como do Oriente esperavam ouvir a palavra da verdade: os hereges arianos, por exemplo, pediram ao Papa Júlio I (+ 352) aprovasse a deposição do bispo de Alexandria, S. Atanásio, campeão da ortodoxia; o Pontífice então chamou a Roma acusadores e acusados, e fez-lhes justiça. O seu sucessor, o Papa Libério (+ 366), foi exilado pelo Imperador por haver recusado aprovar a condenação de Eustácio de Sebaste, mestre da reta fé. O Imperador Justiniano I mandou buscar o Papa Virgílio (+555) em Roma e submeteu-o a vexames em Constantinopla, porque o Pontífice se recusava a sancionar os éditos dogmáticos de S. Majestade; o mesmo aconteceu ao Papa Martinho I (+ 653) o que bem mostra o valor (diríamos: dirimente) que se atribuía à sentença de Roma, mesmo quando os bizantinos mais e mais se deixavam levar por tendências separatistas e autonomistas.

A esses testemunhos, que ainda poderiam ser acrescidos por outros, aplique-se agora um princípio clássico no Cristianismo: “Quod apud muitos unum invenitur, non est erratum, sed traditum” (Tertuliano), isto é, uma crença uniformemente professada por diversas comunidades não pode provir do erro, mas deriva-se de legítima tradição. Testemunhas numerosas, independentes e rigorosamente unânimes, merecem fé já no plano meramente humano…; Muito mais merecem-na no plano sobre-natural, onde Cristo assiste à sua Igreja.

Concluir-se-á então: o primado que os bispos de Roma desde o séc. I exerceram na Igreja é legítimo, pois não faz senão continuar o primado de Pedro, primado que este Apóstolo recebeu diretamente de Cristo.

Após esta explanação, entende-se que os concílios gerais haja sucessivamente até os tempos modernos inculcado o primado romano. Verdade é que em alguns sínodos do séc. XV se fizeram ouvir vozes “conciliaristas”; tais vozes, porém, não prevaleceram contra o que foi explicitamente declarado nos concílios de Leão II (1274; Denzinger, Enchiridion 466), de Florença (1439; Dz 694), do Vaticano I (1870; Dz 1822-1840), e na profissão de fé tridentina (1564; Dz 999).

O significado do título “Igreja Romana”

Na base de quanto acaba de ser dito, vê-se que o apelativo de Romana é tão característico da Igreja de Cristo quanto às designações de Católica e Apostólica.

O atributo Católico significa que a Igreja de Cristo é aberta a todos os povos, nada tendo de reservado a determinada nação. Apostólica indica que a Igreja está baseada sobre a pregação dos Apóstolos, cuja doutrina vai sendo transmitida ininterruptamente de geração a geração. Em determinadas épocas da história, poder-se-á admitir (ou exigir mesmo) a reforma dos homens da Igreja e dos seus costumes; nunca, porém, se empreenderá a reforma da estrutura essencial e do dogma da S. Igreja; a autenticidade dessa estrutura é garantida pela continuidade, ou seja, pelo contato ininterrupto com a obra dos primeiros Apóstolos.

Romana neste contexto significa que a Igreja de Cristo e dos Apóstolos é, em particular, a Igreja de Pedro, bispo de Roma, pois dentre os seus discípulos Jesus escolheu Simão para ser primaz. É a afinidade existente entre Pedro e o bispado de Roma que explica o título Romano. Como se vê, este não significa preferência nacionalista nem discutível predomínio de alguma nação sobre as demais dentro da Igreja universal de modo a se poder falar equivalentemente de “Igreja Anglicana”, “Igreja Bizantina”, “Igreja Moscovita”, “Igreja Brasileira”, “Igreja Católica Popular, Progressista (nos países da Cortina de Ferro)”.

Igreja Romana significa Igreja Petrina, e Igreja Petrino significa Igreja onde Pedro e seus sucessores ocupam o lugar primacial que Cristo mesmo lhes assinalou; mais nada…

Pergunta-se agora: o Chefe visível da Igreja terá que ser necessariamente o bispo de Roma?

A este quesito deve-se dar resposta afirmativa por dois motivos:

a) a Arqueologia comprova a estada e a morte do Apóstolo Pedro em Roma; deste fato se segue que os sucessores de Pedro na cátedra romana são os herdeiros dos poderes entregues por Cristo àquele Apóstolo;

b) independentemente do fato arqueológico, fala a Tradição cristã, a qual sempre ensinou que o bispo de Roma é o Chefe visível da Cristandade. Ora essa voz unânime e constante da Tradição, ainda hoje afirmada na Igreja, é por si mesma suficiente fonte da Revelação.

Desta maneira a associação do primado com a sé romana é, para o católico, o que em linguagem técnica se chama “um fato dogmático”, não “fato meramente histórico”, isto é, fato cuja certeza está baseada em fundamento ainda mais sólido que o dos dados históricos; é, sim, por Revelação divina que o cristão professa tal associação. – Não será necessário, para explicar esse fato dogmático, dizer-se que Cristo mesmo escolheu a sé de Roma para sé principal (opinião de Melquior Cano, Gregório de Valença, S. Roberto Belarmino, nos séc. XVI/XVII), mas bastará admitir que o Espírito Santo tenha guiado S. Pedro para que este, de um modo qualquer, transmitisse aos bispos de Roma sua suprema jurisdição.

Donde se segue que nem ao Papa é lícito dissolver a união entre primado e sé romana. Verdade é que o Chefe visível da Igreja, o bispo de Roma, poderá por um motivo qualquer não residir nesta cidade (foi o que se deu de 1309 a 1376, durante o dito “Exílio de Avinhão”); Roma, por sua vez, poderá ser destruída e, por conseguinte, deixar de ser sede de bispado. Em qualquer hipótese, porém, o Vigário de Cristo será sempre, por direito, bispo de Roma (mesmo que na prática não possa exercer este direito).

***

NOTA:

[1] Gn 17, 5s: “Daqui por diante não te chamarás mais Abrão, mas chamar-te-ás Abraão, porque te destinei para ser pai de muitos povos. E farei crescer a tua posteridade infinitamente e te farei chefe das nações, e de ti sairão reis”.

 

Sobre o autor