(Revista Pergunte e Responderemos, PR 087/1967)
«O celibato do clero teria fundamentos na Bíblia e na história dos primeiros séculos cristãos?»
Percorreremos os principais textos escriturísticos referentes ao assunto, passando dos que têm significado mais geral aos que diretamente se prendem ao celibato dos ministros do altar. A seguir, indagaremos a repercussão desses trechos na vida do clero no decorrer da história do Cristianismo.
1. A virgindade em 1 Cor 7
Um dos textos mais notórios do Novo Testamento em favor da virgindade consagrada a Deus é o de São Paulo na 1 Cor c. 7. Nesta passagem, o Apóstolo, ao mesmo tempo que reconhece a dignidade do matrimônio, aponta a vida una como estado mais excelente.
Na virgindade como no celibato, o cristão procura, na medida do possível, desvencilhar-se das solicitudes temporais, a fim de aderir diretamente ao Senhor e aos interesses do seu Reino.
Tal é, sem dúvida, o estado ideal, que São Paulo abraçou e que ele recomendou aos seus fiéis:
«Desejaria que todos vós fósseis como eu… Quisera ver-vos isentos de preocupações. Quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao Senhor. Quem tem esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar à esposa. Fica dividido» (1 Cor 7,7.32s).
A vida celibatária, no cristão, é a mais espontânea expressão da mensagem de Cristo: a eternidade já entrou no tempo; a graça santificante é o embrião da glória. Importa então ao discípulo de Cristo abraçar o teor de vida mais adequado para que a semente da eternidade se possa expandir nele e no mundo. Ora justamente a vida virginal ou celibatária procura, dentro do regime da fé, antecipar, em grau máximo, o encontro definitivo com o Senhor Jesus, Divino Esposo das almas, encontro que se dará sem véus nem sombras no fim desta peregrinação terrestre. Assim se compreende que a virgindade tenha sido praticada desde os primórdios da era cristã, quando o mundo pagão e judaico lhe era abertamente infenso.
Não nos demoramos sobre este texto paulino, pois já foi mais longamente abordado em
«P. R.» 7/1957, qu. 7.
2 Os eunucos em Mt 19,12
Eis o texto a analisar:
«Há eunucos que nasceram assim do seio materno.
Há eunucos que se tornaram tais por obra dos homens.
E há eunucos que assim se fizeram eles mesmos, por causa do
Reino dos Céus.
Quem puder compreender, compreenda!»
Antes do mais, convém mencionar brevemente o significado da palavra «eunuco» fora do Evangelho.
No Oriente pagão, «eunuco» (em grego, euné = leito, e écho = ter, guardar; donde «guarda do leito» era o servo castrado que merecia a confiança do seu senhor e, consequentemente, se tornava guarda das mulheres dos nobres e príncipes.
Os cultos helenizas ditos «dos mistérios» (cultos de Diana, Cibele, Átis…) tinham a seu serviço sacerdotes castrados. Qual o motivo dessa praxe? – Entre diversas hipóteses, eis a mais provável: a castração era tida como uma consagração que seqüestrava dos afazeres profanos o indivíduo e dedicava a Deus toda a sua vida: o seu ser era renovado e, de certo modo, assemelhado ao da Divindade, tornando-se apto a realizar as funções do culto.
Entre os judeus, a castração tanto de seres humanos como de animais irracionais era estritamente proibida, por contradizer à obra criadora de Deus. Um eunuco não podia ser admitido à assembléia de culto (cf. Dt 23,2).
Contudo os judeus não ignoravam a existência de homens castrados por mãos alheias, a fim de servirem principalmente nas cortes dos reis que cercavam Israel. Por isto distinguiam duas categorias de eunucos:
a) os eunucos de nascença ou «eunucos de sol», que eram tais desde o dia em que haviam visto o sol, ou ainda «eunucos dos Céus» eunucos feitos por Deus;
b) os eunucos tornados tais pelos homens ou «eunucos de homem».
O horror que os judeus tinham à castração, era, em grande parte, inspirado pela sua expectativa messiânica: sabiam que o Salvador procederia de Israel por via de geração carnal; daí a grande estima dos israelitas à paternidade e à maternidade.
Não obstante, ouvia-se esporadicamente entre os rabinos uma ou outra voz que exaltava a vida celibatária.
Tal é o caso, por exemplo, do Rabino Ben ‘Azzai, que se absteve do matrimônio, justificando-se nos seguintes termos:
«Minha alma adere à Torá; por conseguinte, não resta tempo para a vida conjugal; seja a existência do mundo assegurada por outros!» (T Jeb 8,4).
No S. Evangelho (Mt 19,2), a redação do texto merece atenção:
«Há eunucos que nasceram assim do seio materno.
Há eunucos que se tornaram tais por obra dos homens.
E há eunucos que assim se fizeram eles mesmos por causa do
Reino dos Céus».
A construção é a de um «mashal», provérbio (no sentido bíblico) ou comparação que encerra uma lição de sabedoria.
Eis alguns outros exemplos de provérbios ou comparações sapienciais da Bíblia:
«Há três coisas que me são mistério.
Quatro mesmo, que não compreendo:
vôo da águia nos céus,
rastejar da serpente sobre a rocha,
avanço da nave no seio do mar,
o caminho do homem para junto da donzela».
(Prov 30,18s)
«Quem comprime o leite, dele tira a manteiga,
Quem comprime o nariz, faz jorrar o sangue,
Quem comprime a cólera, promove a disputa».
(Prov 30,33)
Cf. Eclo 26,5-8; 50,27s.
O sábio evoca algumas imagens para dar maior relevo à afirmação final. O interesse da frase está no último termo da enumeração. O que há de característico e picante no provérbio, é justamente a inesperada transposição que se dá no fim da sentença; em Prov 30,33, por exemplo, «comprimir a cólera» não se entende no mesmo sentido que «comprimir o leite e o nariz».
No S. Evangelho mesmo, Jesus recorreu mais de uma vez ao provérbio; tenha-se em vista o texto de Mt 8,20:
«As raposas têm suas covas,
E as aves do céu seus ninhos;
O Filho do homem, porém, não tem onde reclinar a cabeça».
Raposas e aves são mencionadas apenas para fazer contraste para por em realce a afirmação final. É essencial ao provérbio que o último termo seja tão diferente quanto possível dos anteriores; estes lhe devem servir como que de trampolim.
Voltando agora a Mt 19 verificamos que Jesus, em sua comparação (mashal), mencionou primeiramente as duas categorias de eunucos reconhecidas pelos judeus. Acrescentou-lhes, porém, uma terceira categoria, que vem a ser justamente o último membro, imprevisto e surpreendente da sentença; este último membro há de ser entendido em sentido diverso dos anteriores; se, portanto, os eunucos que são tais desde o seio materno e os que foram tornados eunucos pelos homens, devem ser compreendidos no sentido físico ou corporal, os eunucos que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus hão de ser entendidos em sentido metafórico ou espiritual.
Jesus se referiu às duas primeiras categorias de eunucos, unicamente para pôr em plena evidência o terceiro tipo de eunucos, tipo surpreendente. E note-se bem que todo o efeito de surpresa da frase é devido às palavras finais: «por causa do Reino dos Céus». Sim; ao ouvirem «existem eunucos que se fizeram tais», os Apóstolos podiam pensar na castração espontânea, que os pagãos praticavam e que os israelitas abominavam. Quando, porém, Cristo prosseguiu
«… por causa do Reino dos Céus», perceberam que se tratava de algo totalmente diverso do que pensavam; não poderia ser um ato torpe ou condenável, mas, ao contrário, haveria de constituir algo de altamente estimável. Com efeito, «por causa do Reino dos Céus» significa «para mais seguramente entrar no Reino e mais eficazmente nele trabalhar». As palavras de Jesus, portanto, supõem cristãos que tenham percebido o inefável valor dos bens messiânicos e, em conseqüência, hajam compreendido que nenhum sacrifício é demasiado custoso, desde que permita ao homem consagrar-se mais plenamente ao Messias.
Destarte o Senhor exaltava o valor da vida una ou da vida que se abstém de todo comércio carnal a fim de se dedicar por inteiro aos interesses do Reino de Deus. O celibato religioso era assim enaltecido, e enaltecido como uma das mais características expressões do Evangelho; surpreendendo judeus e não-judeus, Cristo queria assim indicar uma das novidades típicas que o Cristianismo veio trazer a este mundo!
3. O pastor de almas em 1-2 Tim
Nas suas epístolas a Timóteo e Tito, São Paulo esboçou a figura ideal do pastor de almas.
Dois textos chamam particularmente a atenção:
1 Tim 3,2: «É necessário que o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher… » A expressão «esposo de uma só mulher» não se opõe apenas à poligamia, pois esta já era vedada pelo Evangelho; mesmo os pagãos e os judeus contemporâneos a Cristo costumavam observar a monogania. Tal expressão exclui, sim, as segundas núpcias, exigindo que o bispo se tenha casado uma só vez.
São Paulo desejava que também os presbíteros, os diáconos e as viúvas consagradas ao serviço da Igreja não contraíssem segundas núpcias (cf. 1 Tim 3,12; 5,9; Ti 1,6). A fidelidade à memória da primeira esposa era louvada pelos próprios pagãos (tenham-se em vista as inscrições funerárias antigas). As segundas núpcias, mesmo na sociedade pagã, podiam ser consideradas como índice de fraqueza ou de continência precária.
Plutarco, por exemplo, censurou a Catão o fato de ter esposado em segundas núpcias, com oitenta anos de idade, a filha de um escravo liberto (cf. Cat. 24).
Há quem julgue que São Paulo, em Tim 3,2.12; 5,9 e Ti 1,6, quis inculcar aos ministros do altar a obrigação de se casarem ao menos uma só vez, pois assim teriam a experiência da vida de família e do governo de casa (cf. 1 Tim 3,4). Tal recomendação se oporia à
depreciação do casamento professada por hereges (cf. 1 Tim 4,3) e a certos costumes pagãos (sacerdotisas romanas, como as vestais, eram obrigadas à castidade, mas prevaricavam, cf. Juvenal, Sat. 1 9).
Todavia parece evidente que São Paulo não quis incutir aos membros da hierarquia sagrada o dever de se casarem, pois assim teria entrado em desacordo com Mt 19,12 («eunucos que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus») como também com os dizeres de 1 Cor 7.7, onde o Apóstolo desejava fossem todos os cristãos isentos dos vínculos do matrimônio. Ademais, se o Apóstolo julgasse que os celibatários são indignos do episcopado, ele mesmo se teria declarado incapaz de exercer esta função. – Em verdade, conforme São Paulo, nem o casamento nem a paternidade carnal são condições necessárias à recepção das Ordens sacras; a virgindade fica sendo o estado de vida mais sublime.
Porque então terá o Apóstolo pensado em dissuadir de segundas núpcias os ministros do altar?
– Já o Antigo Testamento (cf. Lev 21, 14) apresentava certas reservas ao casamento dos sacerdotes. São Paulo, movido pelo espírito da Antiga Lei e mais ainda pela pregação de Cristo, só podia tender a fazer novas restrições ao matrimônio dos clérigos. Não mencionou, porém, o celibato, pois as comunidades cristãs de sua época, recém-fundadas como eram, deviam constar de adultos casados recém-convertidos do paganismo ao Cristianismo; dentre esses adultos é que se recrutariam os diáconos, presbíteros e bispos. Por isto, o Apóstolo quis, ao menos, que só uma vez tivessem contraído matrimônio.
Ademais os próprios gentios poderiam menosprezar o clérigo cristão que incorresse em segundas núpcias. Com efeito, a certos sacerdotes e sacerdotisas do paganismo era vedado casar-se ou, ao menos, casar-se mais de uma vez.
Em Éfeso, por exemplo, o supremo sacerdócio de Diana era confiado a um eunuco, o
«megabiz»; os membros de uma confraria encarregada de oferecer sacrifícios a essa deusa deviam guardar a castidade e seqüestrar-se do mundo durante o ano de suas funções religiosas.
Em Fócida, o sacerdote de Hércules era «misogynés», isto é, abstinha-se do convívio com mulheres durante um ano.
O «hierofanta» ou ministro da religião de mistérios de Eleusis devia observar a continência durante o período de suas funções.
Tais exemplos sugeriram consequentemente a São Jerônimo († 421) a exclamação: «Seríamos dignos de condenação se a verdadeira fé não conseguisse levar-nos a fazer em prol de Cristo o que o erro levou a fazer em prol do mal» (epíst. 123, 8).
São Paulo, pois, em 1-2 Tim e Ti, longe de intencionar levar os pastores de almas ao casamento, propôs, antes, reservas à união conjugal dos mesmos, seguindo destarte a inspiração dada pelo próprio Deus na Lei de Moisés e no Evangelho.
Semelhante conclusão pode ser depreendida de
2 Tim 2,3s: «Suporta teu quinhão de sofrimentos, como bom soldado de Cristo Jesus. Estando na carreira das armas, ninguém se envolve em negócios da vida civil, se quer agradar àquele que o alistou em suas fileiras».
Eis, sumariamente, o significado desta passagem:
Timóteo ou, de modo geral, o pastor de almas é comparado a um soldado alistado por Cristo a serviço do Reino.
Ora nenhuma carreira profana exige, tanto quanto a das armas, consagração total do sujeito ao seu dever de estado; ele não se imiscui nos afazeres meramente civis deste mundo. Só tem uma preocupação, conforme São Paulo: a de merecer a aprovação do seu Chefe ou General, cumprindo fielmente o que dele se exige na milícia. Tal fidelidade ou disciplina, que
caracteriza por excelência a vida militar, impõe ao soldado a total renúncia a si mesmo.
Esta observação do Apóstolo lembra a que o mesmo São Paulo fazia em relação aos que abraçam o celibato: quem não tem esposa, não tem preocupação a não ser a de agradar ao Senhor Deus (cf. 1 Cor 7, 32-34).
Por conseguinte, segundo São Paulo, também Timóteo e o pastor de almas devem renunciar a qualquer ocupação que não seja do ministério sagrado.
Este princípio implica, entre outras coisas, que os ministros de Deus não se devem envolver em afazeres de interesse meramente pecuniário. O Concílio de Calcedônia (451) e outros sínodos posteriores, baseando-se nesta passagem, vedaram aos clérigos atividades comerciais e outras análogas. Este mesmo texto fornece outrossim um válido fundamento para o celibato sacerdotal, pois inevitavelmente a vida conjugal envolve o esposo e pai de família em tarefas de ordem profana, necessárias para assegurar a subsistência do lar. O sacerdote casado perde a possibilidade de consagrar todo o seu tempo ao serviço de Cristo e das almas.
Tais são os principais textos bíblicos que recomendam a vida celibatária para o clero.
Examinemos alguns testemunhos da história do Cristianismo referentes ao assunto.
4. O depoimento da história
Desde os primórdios da era cristã, não poucos ministros de Cristo, a exemplo do Senhor e do Apóstolo, abraçaram a vida celibatária. É o que se pode depreender de um testemunho
de Tertuliano († após 220), que no Norte da África escrevia o seguinte:
«Quantos não vemos nas ordens sacras, que abraçaram a continência, preferiram contrair núpcias com Deus, restauraram a honra de sua carne e, filhos do tempo, se consagraram à eternidade, mortificando em si a concupiscência libidinosa e tudo mais que não teve entrada no paraíso?» (De exhortatione castitatis 13, ed. Migne lat. II 993).
Pouco depois, Origens de Alexandria († 254/255), numa de suas homilias, observava que os sacerdotes no Antigo Testamento estavam obrigados a se casar e ter prole, pois o sacerdócio era inerente à tribo de Levi e consequentemente só se podia propagar por geração carnal.
Acrescentava, porém:
«Na Igreja também os presbíteros podem ter filhos, mas à semelhança daquele que disse: ‘Meus filhos, sofro por vós as dores do parto até que Cristo esteja formado em vós’ (Gal 4,19)» (In Lev h. 6,6).
Não havia lei da Igreja que obrigasse ao celibato (dificilmente mesmo se poderia conceber tal norma, pois o Império Romano tomaria medidas severas contra os celibatários). Unicamente o fervor ou a consciência do eminente dom de Deus que é a vida una, movia os clérigos à continência perfeita. Os que se haviam casado antes de receber as ordens sacras, continuavam a vida conjugal após a ordenação; aqueles, porém, que se haviam ordenado celibatários, permaneciam tais para o resto da vida.
No séc. IV encontram-se as primeiras leis eclesiásticas sobre o assunto, inspiradas provavelmente no fato de que ia aumentando o número de clérigos celibatários.
Assim, na Espanha, o Sínodo de Elvira (Granada), por volta de 300, preceituava aos bispos, presbíteros e diáconos que se abstivessem de todo comércio conjugal com as respectivas esposas e renunciassem a ter prole; quem violasse tal regra, perderia o uso de suas funções clericais (cân. 33).
O Concílio de Elvira, sendo regional, só legislava dentro dos limites de determinada província da Espanha. Deu início, porém, a uma série de admoestações e leis sinodais semelhantes, que em menos de um século recobriram grande parte do Ocidente cristão. Em 386, um sínodo de Roma declarava:
De acordo com o pudor e a honestidade, aconselhamos aos sacerdotes e levitas não vivam com suas esposas» (Hefele-Leclercq, Histoire dos Conciles II 71).
Esta disposição foi reproduzida pelos Concílios regionais de Cartago, de 390 e 401. Este último chegou a estipular a pena de deposição para os clérigos que violassem a norma assim dada. O Concílio de Toledo (Espanha) em 400 proibiu fossem promovidos na hierarquia eclesiástica os clérigos que usassem do consórcio matrimonial (cân. 1). Em 401 (ou 417?) o Concílio regional de Turim (Itália) adotou medida semelhante.
A tendência a tornar cada vez mais imperiosa a recomendação do celibato se manifesta bem no episódio seguinte:
Após o Sínodo Romano de 386, o Papa Sirício dirigiu uma carta a Himério, bispo de Tarragona (Espanha), transmitindo-lhe as normas adotadas no referido Sínodo. Eis como argumentava:
Ouve-se dizer que certos sacerdotes e levitas continuam a gerar prole mesmo muito tempo após a ordenação; justificam seu procedimento alegando que no Antigo Testamento era lícito aos Ministros do Senhor procriar. – Lembrem-se, porém, de que os sacerdotes da Antiga Lei eram obrigados à continência enquanto durassem as suas funções no Templo. Disto se deduz que os ministros da Nova Lei, os quais sobem diariamente ao altar, se devem abster perpetuamente das obras da carne. – Em conseqüência, Sirício proibia formalmente a coabitação de sacerdotes e diáconos com as respectivas esposas. E acrescentava que os ‘transgressores de tal lei seriam punidos segundo o grau de sua culpabilidade: se tivessem procedido mal por ignorar a Lei, seriam simplesmente impedidos de subir a ordens superiores; caso, porém, tivessem conscientemente violado a disciplina, seriam destituídos das funções clericais.
O Papa Sirício comunicou o mesmo regulamento aos bispos da África, dizendo-lhes:
«Não tenham os sacerdotes e levitas consórcio conjugal com as respectivas esposas. Recomendamo-lo, porque isto é digno, pudico e honesto. Poupai-nos esse opróbrio, eu vo-lo peço, eu vo-lo recomendo, eu vos exorto. E acrescentava: «Se alguém, ensoberbecido por sua mentalidade carnal, resolver desviar-se desta norma canônica, saiba que já não possui comunhão conosco» (epíst. ad Afros 9).
O Papa Inocêncio I († 417) dirigiu aos bispos Victrício de Ruão e Exupério de Tolosa, na França, semelhante recomendação: lembrava a obrigação de continência imposta aos sacerdotes do Antigo Testamento durante o período do seu ministério no Templo, e comentava: «Quanto mais estes sacerdotes e levitas (do Novo Testamento) devem guardar a continência desde o dia de sua ordenação, eles que exercem o sacerdócio sem interrupção! Não há dia algum em que não devam oferecer o santo sacrifício ou administrar o Batismo» (epíst. ad Vietricium 10, ad Exuperium 1).
No século V, por iniciativa do Papa São Leão Magno († 461), a lei da continência total, que vigorava para os bispos, presbíteros e diáconos, foi estendida aos subdiáconos (cf. epíst. ad Anastasium Thessalonicensem 4).
Os Concílios regionais foram corroborando e difundindo tal legislação, de sorte que nos tempos de São Gregório Magno Papa (590-604) a praxe comum do Ocidente impunha a todos os clérigos, a partir do subdiaconato, que se abstivessem de contrair matrimônio ou de usar de matrimônio anteriormente contraído.
Como se compreende, a fraqueza humana levou freqüentemente os eclesiásticos a transgredir tal disciplina. O Papa São Gregório VII († 1085) pediu mesmo aos fiéis que desertassem as igrejas onde oficiassem sacerdotes incontinentes (cf. Mansi, Concilia t. XX 494).
Não obstante, através de tais vicissitudes prevaleceu na Igreja e no povo de Deus a consciência da sublimidade da vida una; esta foi sendo repetidamente incutida pelos Papas e Concílios regionais durante toda a Idade Média Ascendente.
Por fim, em 1139 o Concílio ecumênico do Latrão III declarou nulo o matrimônio contraído por um clérigo de ordens maiores. Chegava assim a termo a legislação sobre o celibato sacerdotal no Ocidente, conservando-se como tal até nossos dias.
No Oriente, porém, a praxe se manteve mais branda. Em 692, o Concílio Trulano a sancionou definitivamente nos seguintes termos: os varões que, depois de casados, recebam o subdiaconato e o presbiterado, não estão obrigados a deixar a vida conjugal. Não é lícito, porém, contrair matrimônio após o subdiaconato. Quanto aos bispos, devem viver em continência perfeita.
É notório que por ocasião do Concilio do Vaticano II se delinearam fortes movimentos em favor da revisão do estatuto do celibato no Ocidente e, em particular, em prol da admissão de uma classe de sacerdotes casados, a fim de diminuir a escassez de clero em certas regiões do globo. Contudo Sua Santidade o Papa Paulo VI manifestou seu desejo de não alterar a legislação vigente no Ocidente. Em carta dirigida ao Cardeal Tisserand, decano do Sacro Colégio, declarava:
«Não é oportuno debater publicamente (no Concílio) esse tema, que requer a máxima prudência e reveste tão grande importância. Temos o propósito não somente de conservar, tanto quanto depende de Nós, essa lei antiga, santa e providencial, mas também de reforçar sua observância, renovando nos sacerdotes da Igreja latina a consciência das causas e razoes que hoje, precisamente hoje de modo especial, fazem que se deva considerar muito adequada essa mesma lei, graças à qual os sacerdotes podem consagrar todo o seu amor unicamente a Cristo e se dar total e generosamente ao serviço da Igreja e das almas» (cf. La Documentation Catholique» LXII, 19/XII/1965 col. 2183s).
Consequentemente, o Concílio do Vaticano II em mais de uma passagem incutiu firmemente a observância do celibato entre os clérigos da Igreja Ocidental. Tenham-se em vista os seguintes textos:
«A perfeita e perpétua continência por amor ao Reino dos Céus, recomendada por Cristo Senhor (cf. Mt 19,12) – aceita com gosto e louvavelmente praticada por não poucos cristãos, no decurso dos tempos e também no nosso – foi sempre tida em alto apreço pela Igreja, de modo especial em favor da vida sacerdotal. Pois é ao mesmo tempo sinal e estímulo da caridade pastoral e fonte peculiar de fecundidade espiritual no mundo. Não que por sua natureza seja exigida do sacerdócio, como se evidencia pela praxe da Igreja primitiva e pela tradição das Igrejas Orientais…
A verdade é que o celibato se ajusta de mil modos ao sacerdócio. Pois a missão toda do sacerdote está dedicada ao serviço da nova humanidade, que Cristo, o vencedor da morte, suscita no mundo pelo Seu Espírito… Pela virgindade ou pelo celibato, guardado por amor ao Reino dos Céus, os presbíteros se consagram a Cristo de maneira nova e privilegiada, a Ele mais facilmente aderem de coração indiviso, dedicam-se mais livremente n’Ele e por Ele ao serviço de Deus e dos homens, servem com mais disponibilidade a Seu Reino e à obra da regeneração vinda do alto e assim se tornam mais aptos a receber de maneira bem ampla a paternidade em Cristo…
Fundamentado no ministério de Cristo e na Sua missão, o celibato, que de início era recomendado
aos sacerdotes, foi depois imposto por lei na Igreja Latina a todos os que iriam ser promovidos à ordem sacra. O Sacrossanto Sínodo torna a reconhecer e a confirmar esta legislação para os que se destinam ao Presbiterado, confiando no Espírito que o dom do celibato, tão coerente com o sacerdócio do Novo Testamento, seja outorgado com liberalidade pelo Pai, contanto que aqueles que participam do sacerdócio de Cristo pelo sacramento da Ordem – e com eles ainda a Igreja toda – o peçam com humildade e insistência…
Roga, pois, este Sacrossanto Sínodo não somente aos sacerdotes, mas também a todos os fiéis, que o precioso dom do celibato sacerdotal lhes mereça o apreço e que todos peçam a Deus, conceda sempre e com abundância tal dom à Sua Igreja» (Decreto («Presbyterorum Ordinis» 16).
Veja-se um complemento a este assunto na questão 5 do presente fascículo.