(Revista Pergunte e Responderemos, PR 122/1970)
«O celibato do clero está sempre na ordem do dia.
Que novidade poderia comunicar-nos sobre o assunto?»
Sobre o assunto «celibato do clero» prosseguem debates e comentários calorosos. Assaz interessante é a entrevista dada pelo Cardeal Hoeffner, arcebispo de Colonha (Alemanha), e publicada no jornal «Kirchlicher Anzeiger für die Erzdioezese Kôln» de 1° de agosto de 1969.
Segue-se o trecho de tal entrevista que pode interessar diretamente ao público brasileiro:
1. Perda para a Igreja
Jornalista: «Há grupos de sacerdotes que pedem a abolição do que chamam ‘o celibato obrigatório’. Que pensa a respeito V. Eminência na qualidade de sociólogo?»
Cardeal Hoeffner: «O celibato sacerdotal abraçado em vista do reino de Deus apresenta, sem dúvida, problemas sociológicos e psicológicos. Todavia é somente na fé que ele pode ser compreendido em toda a sua profundidade. A vocação ao celibato, da mesma forma que a vocação ao sacerdócio, é uma escolha, uma graça que vem de Jesus Cristo. O Senhor louva aqueles que, em vista do reino de Deus, estão prontos a deixar ‘casa, esposa, irmãos, parentes ou filhos’ (Lc 18,29; Mt 19,29). Em nossa sociedade secularizada, em nossa civilização do conforto, o celibato em vista do Reino de Deus é precisamente uma excelente maneira de seguir o Senhor até as últimas conseqüências.
Um leigo, Alberto Goerres, professor da Universidade de Munique e médico psiquiatra, escreveu recentemente que a abolição do celibato ‘seria para a Igreja uma perda enorme’. Talvez a lamentável pressão contra o celibato levasse o povo de Deus a ter que se contentar em breve com um tipo de padres mais achatado, mais tíbio, mais grosseiro. Tudo isso só estimularia o desencadeamento do erotismo… e a dissolução do casamento entre os leigos’».
2. Amadurecimento da personalidade
Jornalista: «Não é raro ouvir dizer que o celibato entrava a maturidade da personalidade… Certos grupos de sacerdotes declararam recentemente que, para eles, se trata de revalorizar a sexualidade entre o homem e a mulher».
Cardeal Hoeffner: «Antes de exprimir meu modo de pensar, desejo citar de novo o professor Alberto Goerres. Crer que, ‘sem a experiência das relações sexuais, o homem não pode chegar à maturidade de sua personalidade, escreve ele, é pura ideologia, e o tipo da afirmação não científica. Temos todo motivo para crer que entre os sacerdotes católicos existem ao menos tantos homens maduros quantos entre os advogados, os professores, os médicos e os pastores protestantes’.
O celibato abraçado em vista do reino de Deus não é um maniqueísmo hostil à sexualidade; é a aventura de um amor que se dá ao Cristo. O sacerdote deve assemelhar-se a Cristo, que se entregou definitivamente e sem reserva em favor dos seus. O verdadeiro problema que se coloca para o sacerdote hoje, é o seguinte: consagrar toda a nossa existência a ser pai e irmão de uma comunidade e nesta exercer o ministério da reconciliação, será isto, hoje ainda, algo de necessário e que valha a pena? Quem quer que tenha alguma noção dos problemas e das indagações dos homens de hoje não ousará responder pela negativa».
3. A Igreja não obriga ao celibato
Jornalista: «Muitos sacerdotes não se opõem ao celibato em si, mas ao celibato obrigatório, o qual contraria o espírito do Evangelho. Sacerdócio e celibato deveriam ser dissociados».
Cardeal Hoeffner: «Afirmar que, pelo celibato anexo à função ou o celibato obrigatório, a Igreja constrange ao celibato os candidatos ao sacerdócio, é uma calúnia. Eu, que sou bispo, só me disponho a ordenar sacerdote um jovem quando, depois de madura reflexão, tenha chegado à convicção de que Cristo lhe deu o duplo dom da vocação ao sacerdócio e da vocação ao celibato em vista do reino de Deus. Quem aspirasse ao sacerdócio aceitando o celibato como uma condição lamentável que é preciso aceitar, sem ter certeza de que o Senhor lhe deu o dom de poder compreender, esse candidato procederia de modo temerário e culpável.
Enquanto bispo, da mesma forma como a ninguém obrigo a tornar-se sacerdote, não obrigo quem quer que seja a não se casar. A liberdade de decidir compete àquele que Deus chama. Quem, mais tarde, reconhece que se enganou, recebe da Igreja uma dispensa. Assim também a Igreja concede dispensa a quem perdeu o dom do celibato por própria culpa – o que também é possível».
4. Abolição do celibato, remédio à falta de vocações?
Jornalista: «Diz-se muitas vezes que no mundo de hoje a Igreja teria a obrigação de renunciar ao celibato sacerdotal, pois esta seria a única forma de remediar à falta de padres; muitos sentem-se chamados ao sacerdócio, não, porém, ao celibato».
Cardeal Hoeffner: «O segundo Concílio do Vaticano respondeu claramente a esta questão, e sua resposta fornece-nos a chave do problema. Colocou o celibato sacerdotal sob o signo da virtude teologal da esperança. ‘A Igreja, diz o Concílio, nutre a confiança de que o Pai concederá a suficiente número de homens a vocação ao celibato ao mesmo tempo que a vocação ao sacerdócio, contanto que isto seja humilde e instantemente impetrado’ pelos sacerdotes e pela Igreja inteira (Decreto sobre os Presbíteros n° 16).
O sim ao celibato é uma questão de fé, não somente da parte dos homens que se tornam presbíteros, mas também da parte das famílias católicas e de todo o povo de Deus. O celibato, em última análise, é a alegria da cruz. No decorrer da sua história, a Igreja se renovou sempre e exclusivamente mediante um dom maior de si a Cristo, e nunca mediante um dom menor.
De resto, a experiência mostra que a abolição do celibato não traria número maior de vocações sacerdotais. Um grupo de trabalho que dirigi no Encontro de Coira (Suíça) estendeu-se demoradamente sobre este assunto no dia 9 de julho. A Igreja ortodoxa da Iugoslávia, que conta cerca de 9 milhões de membros, só tem 800 seminaristas, embora o clero aí seja casado. Ao contrário, a Igreja Católica da Iugoslávia, que conta 7 milhões de membros, tem 4.500 seminaristas, apesar do celibato sacerdotal. Em Oldenburg, as vocações sacerdotais na população católica são 500% mais numerosas do que as vocações para pastor na população protestante. A Igreja protestante de Berlim-Oeste comunicou que, das suas 373 paróquias, 50 não têm pastor. E na sua conferência de encerramento do Encontro de Coira o Cardeal Suenens disse: ‘As Igrejas protestantes da Inglaterra, por exemplo, contam 3.000 postos vagos; não obstante, o clero respectivo é casado’».
5. Sacerdotes casados e sacerdotes celibatários?
Jornalista: «Alguns propõem sejam ordenados sacerdotes tanto homens casados como não casados. Deste modo, o celibato seria mantido, e ao mesmo tempo o acesso ao sacerdócio seria franqueado também aos homens casados».
Cardeal Hoeffner: «A experiência das Igrejas luteranas, calvinistas, reformadas e ortodoxas mostra que, dentro de algumas dezenas de anos, também na Igreja católica não haveria mais sacerdotes diocesanos celibatários. Aplicar-se-ia a lei sociológica da ‘via larga’ que se abre e pela qual finalmente todos se encaminham. Caso se pusesse em prática a hipótese acima, ou o celibato desapareceria por completo, como no protestantismo, ou se refugiaria nos claustros, como nas Igrejas ortodoxas. J. -C. Hampe escreveu a respeito das Igrejas protestantes: ‘Na verdade, o celibato dos pastores é absolutamente impensável’.
Apesar do seu valor íntimo, o celibato sacerdotal depende de uma decisão coletiva. Num decanato[1] em que a maioria dos padres for casada, tornar-se-á, com o tempo, impossível que dois ou três padres continuem a viver celibatàriamente em meio aos colegas. Esse sinal escatológico e ‘revolucionário’ que é o celibato em vista do reino de Deus desaparecerá por completo. Resta saber se isto será uma bênção para nossos lares e nossas famílias católicas».
(Texto traduzido de «La Documentation Catholique» t. LXVI, 19/10/1969, n9 1549, pp. 918-920).
A respeito do tema abordado sob o n.º 4 da entrevista acima, pode-se ainda notar o seguinte:
O jornal «La Croix» de Paris, aos 18/7/69, dá noticia de um colóquio realizado em Moscou poucos dias antes entre o P. Wenger, diretor desse mesmo periódico, e Monsenhor Nikodim, metropolita de Leningrado
« … Monsenhor Nikodim mostrou-se bastante preocupado com a crise da fé e do sacerdócio na Igreja latina. Visto que os arautos do casamento dos padres invocam freqüentemente a tradição da Igreja ortodoxa, perguntei ao metropolita qual a sua opinião sobre assunto tão delicado. Respondeu-me que, se isto dependesse dele, pediria a todos os sacerdotes ortodoxos que observassem o celibato. A experiência mostrou-lhe quanto os sacerdotes que não têm encargo de família são mais dedicados ao Senhor e aos seus fiéis.
Isto, aliás, corresponde ao ensinamento de S. Paulo e à lição da história. Apesar das defecções, o celibato dos sacerdotes é a grande força da Igreja latina. É preciso não o
abandonar.
… Haverá sempre vocações. Devemos ter confiança no Espírito Santo. Vem a propósito um episódio da vida de João XXIII[2]:
Nos primeiros tempos do seu pontificado, João XXIII não conseguia conciliar o sono.
Certo dia, uma voz pareceu dizer-lhe em sonho: ‘Angelo Roncalli, és tu que diriges a Igreja ou o Espírito Santo?’ Daquele dia em diante, ele permaneceu em paz. Assim também, concluiu Mons. Nikodim, devemos na crise presente ter confiança no Espírito Santo. É Ele quem dirige a Igreja… »
(Transcrito de «La Documentation Catholique», ib., p. 931).
Os dizeres das páginas anteriores, concretos e vivos como são, trazem sua contribuição interessante e valiosa para o debate sobre o celibato sacerdotal: amadurecimento de personalidade, perspectivas de aumento de vocações… aí são considerados à luz de dados concretos e muito significativos. O casamento do clero não parece resolver os problemas; diz a experiência dos cristãos orientais. É no encontro com o Invisível, na oração e na vida interior, que o sacerdote acha e achará primordialmente a explicação e justificativa de sua missão; na união íntima com o Criador ele encontrará os deleites que criatura alguma lhe pode proporcionar.
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NOTAS
[1] Decanato = circunscrição eclesiástica que compreende algumas paróquias.
[2] Há muito que Mons. Nikodim trabalha na redação de uma biografia do Papa João XXIII.