(Revista Pergunte e Responderemos, PR 276/1984)
3. Sacerdócio e celibato: conveniência
Levaremos em conta especial a encíclica do papa Paulo VI, Sacrossanctum Concilium, citada como SC.
3.1. Fundamentação teológica
1) Identificação com Cristo
O sacerdócio cristão só pode ser entendido à luz de Cristo, ou seja, como participação do sacerdócio do Senhor Jesus. Ora, para executar a sua missão de Mediador, Jesus Cristo permaneceu toda a vida em estado de celibato, estado que lhe permitiu plena dedicação ao serviço de Deus Pai e dos homens (cf. SC 21). Além disto, o Salvador abriu aos seus discípulos a perspectiva de uma consagração total ao Reino dos Céus mediante renúncia ao matrimônio; deixou-lhes, com efeito, tal convite: “Há eunucos que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus. Quem pode compreender, compreenda» (Mt 19,12).
Assim interpelado pelo Divino Mestre, é lógico que o sacerdote procure responder-lhe não somente abraçando o ministério sacerdotal, mas também compartilhando com o Senhor o estado de vida indivisa. Destarte, ele dá uma resposta de amor ao amor que Cristo manifestou de modo tão elevado (cf. Jo 15,13; 3,16). Consequentemente, o celibato vem a ser o sinal de um amor sem reserva e o estímulo de uma caridade aberta a todos os homens (cf. SC 19-25).
2) Serviço à Igreja
Identificado com Cristo quanto ao seu estado de vida, o sacerdote está em condições de amar a Igreja como Cristo a amou, dedicando-se a Ela com a máxima disponibilidade. A vida do sacerdote celibatário há de ser marcada pelas notas da harmonia e da unidade de ideal: todas as suas riquezas naturais e sobrenaturais estão livres para se dedicar plenamente à leitura e à assimilação da Palavra de Deus, à oração pública e particular, à celebração consciente e férvida da S. Eucaristia, ao serviço de todos os homens. O celibato deve proporcionar ao padre as melhores disposições psicológicas e afetivas para que exerça continuamente a caridade e seja mais solicito pastor de almas, fazendo-se tudo em favor de todos (cf. 1Cor 9,22; 2Cor 12,15). Em suma, a imagem de Cristo deve transparecer através dos traços do sacerdote celibatário, de modo que este ofereça à Igreja e ao mundo um sinal vivo do Senhor presente entre os homens (cl. SC 26-32).
3) Sinal dos bens celestiais
A vida una consagrada a Deus é uma das primeiras e mais espontâneas expressões do Cristianismo neste mundo. Com efeito, já em 56, na sua primeira carta aos Coríntios, São Paulo ensinava que o matrimônio é santo, mas a virgindade ainda é mais santa (cf. 1Cor 7,8). Esta afirmação surpreendia judeus e pagãos, cujas idéias não os levariam a tal conclusão; era caracteristicamente inspirada pela mensagem cristã. Em verdade, o cristão sabe que, com a vinda de Cristo, a vida eterna já começou neste mundo, os bens celestiais e definitivos já são dados aos homens mediante o Batismo e a Eucaristia; por isto interessa sumamente ao discípulo de Cristo viver o mais possível desses valores e para esses valores eternos numa atitude de virgindade espiritual e (se possível) corporal. Na virgindade física (que não deve ser separada da virgindade espiritual, ou seja, da entrega total do amor a Cristo), o cristão antecipa, na medida do possível, o estado final ou escatológico: “Na ressurreição, ninguém tomará marido nem mulher, mas serão todos como anjos no céu» (Mt 22,30).
É também a este título que o celibato convém ao sacerdote: a vida una é, aos olhos da fé, testemunho de que a eternidade baixou a este mundo e um estimulo para que todos os homens levantem os corações ao alto (cf. Cl 3,1-4 e SC 83-34).
Eis, em resumo, os grandes motivos que recomendam o celibato cristão em geral e o do clero em particular.
Não se pode, porém, esquecer que contra tal posição se levantam objeções.
3.2. Objeções
1) Contrário à natureza
Afirma-se que o celibato violenta o ser humano, colocando-o em situação física e psicológica antinatural. Impede-lhe o equilíbrio e a maturidade de personalidade, sujeitando-o à aridez afetiva ou a atitudes desumanas. Em suma, o celibato menospreza valores humanos, que Deus criou e que Cristo Redentor santificou (cf. SC 10).
Que dizer?
– Antinatural é “não amar». O homem foi feito para amar; é esta a sua necessidade primordial, de tal modo que Bernanos podia dizer que “o inferno consiste em não amar».
O amor, porém, não se exerce apenas no plano biológico. Ele pode mesmo prescindir de qualquer contato sexual, pois o homem, além de ser carne, é espírito; com o espírito ele adere, em puro amor, a Deus e a todos os filhos de Deus.
Ora o sacerdote ama e ama intensamente dispensando-se, porém, das manifestações carnais do amor. Um ditado popular assevera com razão “O padre é o coração dos homens junto a Deus, e o coração de Deus junto aos homens» o que quer dizer: no coração do padre se encontram o amor, ou seja, todas as aspirações retas e nobres dos seres humanos e, ao mesmo tempo, o amor ou toda a benevolência com que Deus ama os homens.
O sacerdote celibatário não ignora nem despreza a vida afetiva (o que poderia redundar em desequilíbrio físico e psíquico de sua personalidade), mas disciplina-a e eleva a um plano superior; é em Deus e por Deus que ele concebe os seus afetos. Em conseqüência, o padre deve amar com um coração dilatado, exercendo uma paternidade mais elevada do que a paternidade natural, paternidade que prolonga, de maneira particular, a paternidade de Deus em relação aos homens (cf. SC 53-56).
Não se deve, pois, dizer que a Igreja priva o sacerdote do direito de amar. Ao contrário, é para garantir a abertura e a universalidade do amor de seus ministros que a Igreja lhes pede o celibato.
Se um cristão quer casar-se legitimamente, tem em seu favor o sacramento do matrimônio, que santificará a sua vida conjugal. Não há necessidade de que seja sacerdote na Igreja Latina, se deseja casar-se. Em suma, amar não quer dizer apenas “ter vida sexual»; a vida sexual não é senão uma das expressões do amor de duas pessoas que Deus uniu pelo sacramento do matrimônio.
2) Homem solitário
“Pelo celibato o sacerdote se condena a viver em solidão, que se lhe torna fonte de amargura e aviltamento» (SC 10).
– Em resposta, podem-se lembrar as palavras do Santo Cura d’Ars: “O sacerdote é um homem devorado pelos homens». Em virtude do seu ministério, está constantemente em contato com seus semelhantes. que ele procura ou que o procuram; Deus o chamou em favor de todos os homens, dele fazendo fermento na massa e luz para o mundo. E, quando, nas horas noturnas, o sacerdote se recolhe, deve sentir a necessidade de se encontrar a sós com o Senhor Deus a fim de orar e meditar; é nesses momentos que ele se revigora e “reabastece» para poder continuar a dar aos homens a palavra e a vida do próprio Deus.
Naturalmente, pode haver na vida do sacerdote momentos em que sinta a falta de reconforto humano. Lembrar-se-á então de Cristo, que em grau máximo quis experimentar tais situações, mas pôde declarar: “Não estou só, porque o Pai está comigo (Jo 16,32). É na intimidade com Deus que o padre encontra a força de alma necessária para dissipar melancolias e depressões; o Divino Amigo, dando-lhe parte mais intensa nas suas dores, dá-lhe também a consciência de estar mais identificado com o mistério da morte que é vida para o mundo.
Nas circunstâncias normais, não hão de faltar ao sacerdote abalado a solicitude de seu pai espiritual, o Bispo diocesano, o apoio de seus irmãos no sacerdócio e o reconforto do povo de Deus; a S. Igreja deseja que todos os seus filhos se auxiliem mutuamente nos setores que lhes estejam ao alcance, conscientes de que formam todos um só corpo em Cristo (SC 58-59).
3) Escassez de clero
“Se o matrimônio fosse permitido aos padres, haveria maior número de vocações; muitos jovens parecem desistir do sacerdócio por sentirem atrativo para o casamento. Este uma vez concedido, a carência de sacerdotes deixaria de ser o problema que ora tanto preocupa a Igreja» (cf. SC 8).
– A experiência das comunidades orientais que admitem o casamento de seus ministros, demonstra que tal suposição é infundada; nem por isso tem mais clero do que os cristãos do Ocidente.
A raiz da escassez de clero está na atenuação do senso de Deus e das coisas sagradas que se verifica tanto nos indivíduos como nas famílias. Também se deve recensear a perda da estima pela Igreja, instituição que salva mediante a fé e os sacramentos. Em suma, a descristianização dos lares e das escolas, o esvaecimento do senso religioso nas diversas camadas da sociedade tornam assaz difícil o surto e o desabrochar das vocações sacerdotais na juventude contemporânea.
A solução de muitos dos problemas que afligem os cristãos em nossos dias, depende da recristianização da família nos lares onde a fé é conservada, o apelo do Senhor para o ministério sagrado não somente se faz ouvir com freqüência, mas encontra a devida correspondência por parte dos jovens e o estímulo por parte dos mais velhos É notório que muitas famílias contemporâneas acolhem com tristeza e repulsa a notícia de que um de seus filhos se deseja consagrar a Deus.
De resto, é preciso não esquecer que o Senhor Jesus quis confiar a evangelização do mundo a um punhado humanamente insignificante de discípulos, os quais, não obstante, realizaram maravilhas com a graça de Deus. Em toda a história da Igreja, a messe sempre foi grande e exíguo o número de operários – razão pela qual ainda hoje no Evangelho Cristo exorta seus fiéis a recorrerem à oração, a fim de que o Pai suscite novas e novas vocações na S. Igreja (cf. SC 47 e 49).
4) Dois dons distintos
“A Igreja faz coincidir o dom da vocação sacerdotal com o da perfeita castidade. Ora pode acontecer que alguém receba o chamado para o ministério sagrado sem receber ao mesmo tempo o dom da vida celibatária» (cf. SC 71).
– Por certo, o dom divino do ministério sacerdotal é distinto do da perfeita continência. Note-se, porém, que a vocação sacerdotal, embora provenha de Deus, não se torna definitiva, concreta e atuante senão na Igreja. Esta é o Corpo vivo e prolongado de Cristo; é por Ela que Cristo fala, confirmando ou não nos seus jovens fiéis o chamamento para o sacerdócio. Ora à Igreja o Senhor confiou a faculdade de estabelecer os requisitos necessários para que os homens possam exercer o ministério sacerdotal. Por conseguinte, não é licito opor entre si “chamado de Deus para o sacerdócio» e “exigência da Igreja», pois, na verdade, o chamado divino só vem dentro do quadro de condições estipuladas pela Igreja. “Quando no Ocidente Deus dá o dom da vocação sacerdotal, também dá o da continência perfeita», é o que se deve dizer numa visão de fé coerente (cf. SC 15 e 62).
Isto quer dizer que, quando alguém sente inclinação para o sacerdócio ministerial, mas, ao mesmo tempo, experimenta forte necessidade de se casar, talvez não esteja sendo por Deus chamado ao sacerdócio; é para desejar que tal pessoa se examine bem a fim de averiguar se Deus não lhe concede a graça de transferir sua necessidade de amor para o plano espiritual, de modo que possa dignamente tender ao sacerdócio e exercer o ministério sagrado. Caso não consiga prescindir do amor conjugal, esteja certo de que Deus não o está chamando para o sacerdócio ministerial.
5) As dolorosas deserções
“Se os padres se casassem, não se verificariam as infidelidades e deserções que, no atual regime, entristecem a Igreja. Os ministros de Cristo dariam o testemunho de vida cristã no setor da família» (cf. SC 9).
– As deserções, que nos últimos tempos se têm registrado em maior número, não depõem contra os valores positivos do celibato na vida sacerdotal, mas chamam a atenção para outro problema: faz-se mister proporcionar um preparo mais adequado e prudente aos jovens que se candidatam à vida sacerdotal (…)
Deve-se também notar que as desistências de sacerdotes se devem não raras vezes a um afrouxamento geral dos mesmos em sua vida de ascese e piedade. Quem negligencia a oração, vai aos poucos perdendo o sabor das coisas de Deus, começa a experimentar o vazio em seu íntimo, e finalmente sente necessidade de se satisfazer em bens criados, aos quais livremente renunciou. As defecções de sacerdotes geralmente não são o resultado de uma crise momentânea, mas, sim a conseqüência de um progressivo afastamento dos valores sobrenaturais. A vida moderna, com suas imperiosas exigências de trabalho, tende muitas vezes a quebrar o ritmo de oração e disciplina do padre; insensivelmente distancia-o de maior vigilância sobre si mesmo, vigilância indispensável para que não se deixe arrastar pela onda dos afazeres e pelos numerosos atrativos sensíveis a que está sujeito. Ora é esse zelo intenso para com a vida espiritual que a S. Sé preconiza, a fim de que os ministros do Senhor não sejam dolorosamente surpreendidos pelas tentações.