(Revista Pergunte e Responderemos, PR 004/1957 )
Será oportuno, antes do mais, reconstituir brevemente o histórico da questão.
Na era apostólica. São Paulo recomendava que o bispo fosse “marido de uma só esposa” (1 Tim 3.3: Tit 1.6). Com isto, certamente não queria afirmar que todo bispo tinha a obrigação de ser casado, pois nesta hipótese contradiria a palavra do Senhor, que reconhece e preza “aqueles que se castraram (se conservaram virgens) por causa do reino dos céus” (Mt 19.12): contradiria também a si mesmo, visto que Paulo desejava aos fiéis “fossem todos como ele mesmo era” (1 Cor 7.7), isto é, celibatários, a fim de se entregarem sem divisão ao serviço do Senhor (cf. 1 Cor 7,32-34). Na verdade, o Apóstolo queria inculcar que, no século l° da nossa era, quando as comunidades cristãs constavam de muitos adultos e casados recém-convertidos, não se escolhesse para o episcopado algum varão casado em segundas núpcias (bígamo em sentido lato); estas, com efeito, eram geralmente desaconselhadas (não, porém, condenadas) pela antiga Igreja, por parecerem uma expressão de incontinência.
Houve, pois, nos tempos iniciais do Cristianismo, bispos, sacerdotes e diáconos legitimamente casados; nenhuma lei lhes proibia o uso do matrimônio.
Mais freqüentes, porém, desde os primórdios eram os clérigos que espontaneamente abraçavam o celibato. A razão disto era o conselho do Senhor que exortava à continência (“quem o pode entender, entenda”; Mt 19,12).
No século 4º esta praxe espontânea começou a ser sancionada por leis de concílios regionais que visavam assegurar aos eclesiásticos os benefícios do celibato. Diversas, porém, foram as prescrições promulgadas no Oriente e no Ocidente.
No Oriente a legislação chegou ao seu termo definitivo em 692 (Concílio Trulano II ou Quinissexto); foi então proibido aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos contrair matrimônio após receberem a respectiva ordem sacra; caso, porém, um leigo casado desejasse ordenar-se, as núpcias anteriormente contraídas não lhe seriam empecilho, nem se exigiria que, depois de ordenado, deixasse de viver maritalmente com a esposa; apenas se lhe pedia que se abstivesse do consórcio conjugal quando estivesse para celebrar as funções do altar (que não eram otidianas); ao sacerdote viúvo ficaria vedado casar-se em segundas núpcias. Quanto aos bispos, o Concílio lhes prescrevia continência absoluta, de sorte que, se um futuro bispo estivesse casado, a esposa, depois de sua sagração, deveria recolher-se a um mosteiro distante, ficando o marido obrigado apenas a prover às despesas de sua subsistência. São estas as determinações ainda hoje vigentes entre os cristãos orientais, quer cismáticos (com poucas exceções). quer unidos a Roma; o Direito Canônico não lhes impõe o celibato, que nunca foi obrigatório na tradição oriental. Em vista da cláusula um pouco mais rigorosa imposta aos bispos, estes no Oriente são de preferência nomeados dentre os monges, que por profissão abraçam a castidade perfeita.
No Ocidente, o primeiro decreto restritivo se deve ao Concílio de Elvira (Espanha) reunido por volta do ano de 300; proibia aos bispos, sacerdotes e diáconos, sob pena de degradação, o uso do matrimônio e o desejo de ter prole (cân. 33). Esta determinação, que a princípio só visava a Espanha, em menos de um século estava em vigor (às vezes sob forma de conselho apenas) em todo o Ocidente. A fórmula definitiva de tal disciplina foi promulgada pelo 1º Concílio ecumênico do Latrão em 1123; a todos os clérigos, a partir do subdiaconato, foi prescrito de maneira peremptória o celibato; em conseqüência, o matrimônio contraído por um eclesiástico depois da respectiva ordenação era declarado inválido. O Concílio de Trento promulgou de novo tal lei no século 16, época em que os Imperadores Ferdinando I (1556-64) e Maximiliano II (1564-76) da Alemanha exerciam pressão sobre o Papa Pio IV (1559-65) a fim de obterem o casamento dos sacerdotes de seu reino, ameaçados pela rebordosa luterana. Sucessivas determinações da autoridade da Igreja têm corroborado frequentemente até nossos dias a obrigação do celibato clerical. No início do século 20, violenta campanha se desencadeou contra essa praxe; na Tcheco-Slováquia, por exemplo, vários sacerdotes, reivindicando o direito de se casar, aderiram à Iednota. associação de tendências cismáticas, à qual o Papa Bento XV resistiu energicamente declarando numa alocução consistorial de 16 de dezembro de 1920: “Veneráveis Irmãos, o que várias vezes já afirmamos ocasionalmente, Nós agora o atestamos solene e categoricamente: nunca esta Sé Apostólica atenuará ou mitigará essa lei profundamente santa e salutar do celibato eclesiástico; muito menos ainda a abolirá” (Acta Apostolicae Sedis XII [1920] 585). Na França, Paul-Louis Couchoud, que se dizia historiador das religiões, chegou a publicar um pseudo-decreto de Leão XIII que abolia a disciplina do celibato para o clero da América Latina; o documento foi formalmente comprovado falso. Mantendo tão rijamente a tradição, a Igreja visa proporcionar aos seus ministros absoluta liberdade para se dedicarem ao próximo e desenvolverem frutuoso apostolado.
Eis, porém, que muito chamou a atenção pública uma dispensa recém-concedida neste setor por S. S. Santidade o Papa Pio XII. Tratava-se do pastor protestante Rudolf Goethe, descendente do poeta Wolfgang Goethe, que, casado e sem filho: se converteu ao catolicismo na idade de 69 anos. Por concessão de Santo Padre, o bispo de Mogúncia, aos 22 de Dezembro de 1951, o ordenou sacerdote, ficando o mesmo autorizado a viver em matrimônio com sua esposa; o néo-sacerdote não seria destinado ao ministério paroquial, mas ao serviço de chancelaria do bispado e à cura espiritual de outros convertidos. No mesmo dia 22 de Dezembro de 1951, o semanário católico inglês Tablet (pg. 470) lembrava que anteriormente já se haviam verificado duas outras ordenações de pastores protestantes casados e convertidos, dos quais um, com a idade de 40 anos, era pai de alguns filhos. No Seminário de Mogúncia, quando o sacerdote Goethe era ordenado, preparava-se para o presbiterado outro ex-pastor casado.
Estes fatos representam, sem dúvida, grande novidade na praxe da Igreja latina, novidade talvez sem precedentes. Há quem, a propósito, aponte o episódio seguinte: numa carta ao rei Filipe II da Espanha (1556-98), datada de 20 de Abril de 1565, o Cardeal Pacheco, Embaixador da Espanha em Roma, referia que seu colega D’Arco, Embaixador de Maximiliano II da Alemanha, lhe afirmara que os legados do Papa Paulo III na Alemanha, sob o Imperador Carlos V (1519-56), tinham dispensado do celibato dezoito sacerdotes. Como se vê, a noticia é complicada e passou por diversos intermediários; julga-se bem provável que o Embaixador D’Arco tenha aludido simplesmente aos poderes concedidos pelo Papa Paulo III aos seus legados em 1548 para reconciliarem sacerdotes casados, com a cláusula de se absterem do ministério sacerdotal.
Está, sem dúvida, no poder da Igreja desligar do celibato os clérigos ocidentais, para que vivam à semelhança dos orientais; trata-se de questão meramente disciplinar, não de lei divina nem de dogma. A razão por que o Santo Padre assim procedeu no caso do pastor Goethe era exposta nos seguintes termos pelo Superior do Seminário de Mogúncia, Monsenhor Reuss:
“Não há dúvida, antigos pastores protestantes, à custa de penosos sacrifícios convertidos ao catolicismo com sua família, são particularmente aptos a servir pela oração e pelo trabalho à magna causa da reunião de todos os cristãos na única Igreja de Jesus Cristo. Ordenados sacerdotes, eles se tornam colaboradores valiosíssimos na conquista deste grande objetivo da Igreja universal” (texto publicado na revista “Etudes” 272, 6, pg. 255).
O motivo da dispensa era, pois, o apostolado. Com efeito; tem-se delineado na Alemanha protestante de após-guerra uma volta notável de atenção para Roma. O fenômeno se explica por diversos fatores: a perseguição movida pelo nazismo aos cristãos em geral, o deslocamento de populações que passam a viver em “diáspora”, as dificuldades que os luteranos encontram para se constituir juridicamente. Em tal situação entende-se que a Igreja Católica lance mão de recursos novos para corresponder às expectativas dos irmãos separados.
Enquanto este ou outro motivo grave o postular, o celibato eclesiástico poderá ser esporadicamente dispensado. É inegável, porém, o grande interesse que tem a cristandade inteira em se conservar a legislação vigente; os benefícios que ela de fato acarreta, são muito mais ponderosos do que as razões que se possam apresentar em contrário. O sacerdote tem que viver como homem de Deus, totalmente devotado aos interesses das almas.
D. Estêvão Bettencourt. – o.s.B.