Consciência e moralidade: consciência e lei

(Revista Pergunte e responderemos, PR 112/1969)

 

«‘Cada um de nós será julgado por Deus de acordo com a sua consciência.

O critério para formar a nossa consciência é a Mensagem Evangélica de Libertação Total do Homem em Cristo, pela qual exprimimos a imagem de Deus.

Para exprimirmos a imagem de Deus em nós, todas as coisas, mesmo a Lei Natural e a Autoridade do Papa, servem de instrumentos’.

Que dizer a respeito?»

Resumo da resposta: A consciência moral é a faculdade que regula, de imediato, os atos humanos, tachando-os de lícitos ou ilí­citos. Por isto, sem dúvida, cada homem será julgado segundo a consciência.

Acontece, porém, que a consciência não é autônoma, mas, sim, teônoma. Compete-lhe considerar a Lei de Deus e aplicá-la à conduta do respectivo sujeito. Ora a Lei de Deus se manifesta por sinais objetivos e sensíveis, como são a lei natural e o magistério da Igreja. Dai a obrigação que a todo cristão compete, de se orientar por aquela e por este.

A lei natural é o reflexo da lei eterna de Deus impregnado na natureza humana. É imutável como a natureza humana é imutável. Apenas se pode dizer que nem sempre a humanidade esteve em con­dições de perceber tudo que a lei natural implica em seu preceito fundamental: «Faze o bem, evita o mal».

O magistério da Igreja é infalível quando se trata de definições de um Concilio Ecumênico ou do Sumo Pontífice (ao falar «ex cathedra») ou ainda quando se trata do ensinamento unânime de todos os Bispos unidos ao Sumo Pontífice. Os pronunciamentos papais que não são «ex cathedra», mas se fazem por meio de encíclicas e bulas, merecem respeito e reverência; o seu grau de obrigatoriedade se depreende das palavras mesmas do respectivo documento; às vezes o Papa intenciona dirimir uma questão controvertida; outras vezes, não quer senão indicar um roteiro para ulteriores estudos.

Dizia Jean-Jacques Rousseau no século XVIII: «Consciência! Consciência! Instinto divino! Juiz infalível do bem e do mal… » Ao que outro filósofo racionalista, Diderot, replicava que bem se sabia que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua consciência em seu favor!

—X—

Resposta: As idéias da questão acima voltam freqüen­temente à baila, principalmente quando se trata de aceitar alguma decisão do magistério da Igreja. Vamos analisá-las com serenidade, considerando sucessivamente: 1) o que é a consciência moral, 2) quais os critérios segundo os quais ela se deve formar, 3) a atitude dos cristãos frente ao magistério da Igreja.

1. Que é a consciência moral ?

A consciência moral é o julgamento íntimo pelo qual defi­nimos a moralidade de nossos atos.

Ora a moralidade é a relação dos atos humanos com o seu Fim Supremo, que é Deus. Não há Moral autêntica sem relacionamento com Deus, pois o homem é naturalmente orde­nado para Deus.

Por conseguinte, a consciência moral vem a ser o julga­mento íntimo pelo qual reconhecemos que tal ou tal ato é conforme à Lei de Deus ou é moralmente lícito; ou reconhe­cemos que é incompatível com a Lei de Deus ou moralmente ilícito. Todo homem, por mais primitivo que seja, possui cons­ciência moral.

A afirmação de que não há Moral sem Deus, é corroborada pelo próprio Jean-Paul Sartre, representante máximo do existencialismo ateu. Este autor faz questão de mostrar que é inconsistente a «Moral leiga» (ou sem Deus):

«O existencialista é muito oposto a um certo tipo de moral leiga que deseja suprimir Deus com o mínimo de inconvenientes possível. Quando em 1880 alguns professores franceses tentaram constituir uma moral leiga, disseram mais ou menos o seguinte:

‘Deus é uma hipótese inútil e pesada; suprimamo-la; mas é necessário, para que haja uma Moral, uma sociedade, um mundo policiado, … é necessário que certos valores sejam levados a sério

e considerados como existentes de maneira absoluta; faz-se mister seja obrigatório em absoluto que sejamos honestos, não mintamos, não espanquemos nossas esposas, tenhamos filhos, etc., etc. … Por conseguinte, vamos fazer um trabalhinho que permitirá mostrar que esses valores existem apesar de tudo, inscritos num céu inteligível, embora Deus não exista’.

Com outras palavras – e esta é, creio, a tendência de tudo que em França se chama radicalismo – nada será mudado, se Deus não existir; encontraremos as mesmas normas de honestidade, de pro­gresso, de humanismo, e teremos feito de Deus uma hipótese ultra­passada, que morrerá tranqüilamente e por si. Ao contrário, o exis­tencialismo julga que é muito incômodo que Deus não exista, pois com Ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores num céu inteligível. Não pode haver nenhum bem absoluto, já que não há consciência infinita e perfeita para o conceber; em parte alguma está escrito que o bem existe, que é preciso ser honesto, que é ne­cessário não mentir, pois então precisamente nos colocamos num plano em que há somente homens. Dostoievsky escreveu: ‘Se Deus não existisse, tudo seria permitido’. É este o ponto de partida do existencialismo» («L’existencialisme estil un humanisme?», 1946, pág. 34-36).

A capacidade de julgar os atos humanos está impregnada na natureza anteriormente a qualquer deliberação da pessoa ou a qualquer convenção da sociedade. Por isto se diz que é uma voz não humana, mas superior ao homem; é a voz do Criador gravada na natureza, voz que indica constantemente ao homem o caminho de volta ao seu Princípio ou a via pela qual ele se deve dirigir para o seu Bem Supremo.

Pode-se dizer também que a consciência é o encontro de Deus e do homem. O Concílio do Vaticano II lembra que «a consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozinho com Deus e onde ressoa a voz de Deus» (Const. «Gaudium et Spes» n° 16). Toda a vida moral pode ser concebida como um diálogo entre o Criador e a criatura: Deus chama o homem à conversão, e o homem lhe responde, positiva ou negativamente, mediante atitudes derivadas de sua consciência.

Todos os povos tiveram a convicção de que o homem ouve a voz do Bem no seu coração. Essa voz não pode ser a da vontade humana, pois há por vezes conflito entre a vontade humana e, esse testemunho interior, que se chama consciência.

Ovídio ( 17 d. C.) dizia ser essa voz «Deus in nobis» (Deus em nós). Epicteto ( 138 d. C.) a tinha como «guia supremo» nas decisões morais. Sêneca ( 65 d. C.) falava de «Deus perto de ti, contigo, em ti», e acrescentava: «Em nós habita um espírito santo, que observa o bem e o mal».

O Cristianismo embora tenha o conceito de Deus trans­cendente (não identificado com o homem), admite também que é Deus quem fala a cada pessoa através da voz da cons­ciência.

Destas considerações se seguem duas conclusões impor­tantes:

1) O homem será realmente julgado segundo a sua cons­ciência, pois esta é o reflexo imediato da Lei de Deus; é em sua consciência que o homem reconhece o bem e o mal, o que deve fazer… Desobedecer à consciência, quando esta manda ou proíbe alguma coisa sem hesitação ou com segurança, é desobedecer ao próprio Deus.

2) «Sem hesitação ou com segurança… » Isto significa que a consciência está obrigada a procurar informar-se ou ter certeza a respeito da vontade de Deus. Ora Deus se manifesta por sinais objetivos, extrínsecos ao homem. Tais sinais são:

a lei natural, para todos os homens;

a Revelação cristã, para os cristãos.

Vê-se, pois, que não compete ao homem conceber as leis da Moral segundo critérios meramente pessoais; não são as conveniências nem o bom senso puramente subjetivo do indi­víduo que fazem as categorias do bem e do mal. Todo homem é teônomo (regido por Deus); ninguém é autônomo (regido por si próprio). Cada ser humano é destinado a tornar-se uma nota harmoniosa numa maravilhosa sinfonia cujo autor e re­gente é o próprio Deus. Ninguém se explica por si mesmo; ninguém tem sua razão de ser em si, mas, ao contrário, todo homem encontra no plano de Deus e no «integrar-se nesse plano» a sua justificativa e a sua grandeza. Por conseguinte, à consciência de cada indivíduo toca o dever de obedecer à vontade de Deus expressa de maneira objetiva.

Numa palavra: a consciência humana não está acima da lei natural e da Revelação Divina, mas, ao contrário, é sujeita a ambas, devendo-lhes obediência.

A respeito da «libertação total» trazida por Cristo aos homens, note-se que é tema que São Paulo explana com grande empenho (cf. Gá1 5,1). Consequentemente, deve ser entendida no sentido que o Apóstolo mesmo lhe atribui. Ora a libertação, segundo São Paulo, consiste em que o homem se emancipe do pecado e das paixões (cf. Rom 6,20-22; 7,17.25; 8,2) ; consiste também na ab-rogação da Lei de Moisés, que colocava os judeus sob o regime do temor mais do que do amor (cf. Gál 4,1-7; Rom 8,15-17). O cristão, porém, assim libertado, não deixa de ser um servo de Cristo (cf. 1 Cor 7,22s; 9,21), servo de Cristo que toma conhecimento da von­tade do Senhor através da Igreja visível e do magistério dessa Santa Igreja:

«Irmãos, permanecei firmes e conservai as tradições que de nós recebestes, tanto por palavra como por carta» (2 Tes 2,15).

«Felicito-vos, irmãos, porque em tudo vos lembrais de mim e guardais as instruções como eu vo-las transmiti» (1 Cor 11,2).

«Se, apesar disto, alguém pretender discutir, nós não temos tal costume, nem o têm as igrejas de Deus» (1 Cor 11,16).

«Se alguém tem fome, coma em casa, a fim de vos não reunir­des para vossa condenação. O resto, quando aí for, eu o resolverei» (1 Cor 11, 34).

É conformando-se a Deus, manifestado autenticamente pelo mistério da Encarnação e da Igreja (pelo mistério do Corpo de Cristo), que o cristão se liberta do pecado e do velho homem, e se torna em plenitude imagem de Deus.

Diga-se agora uma palavra mais minuciosa sobre as re­lações da consciência com a lei natural e com o magistério da Igreja (órgão que exprime a Revelação Divina).

2. Consciência e lei natural

A lei natural é a expressão da vontade de Deus, expressão que o próprio Deus incutiu à natureza humana. Com efeito, todo homem possui em seu íntimo a consciência de que deve fazer o bem e evitar o mal. Deste princípio ele deduz as con­seqüências: não matar, não roubar, não violar a castidade, respeitar as leis do organismo, colocar o dever acima do pra­zer, etc.

A lei natural é sempre a mesma, imutável, pois a natu­reza humana permanece idêntica a si mesma através dos tempos, com sua inteligência, sua vontade, suas faculdades sensíveis e suas aspirações… Ela dita, portanto, ao homem sempre os mesmos princípios.

Embora a lei natural não mude, verificam-se diversos graus de compreensão da mesma através da história: os ho­mens anteriores a Cristo tinham consciência, de certo modo, infantil; percebiam menos do que o homem moderno todas as finuras do preceito fundamental: «Faze o bem, evita o mal»; por isto, praticavam atos que hoje diríamos moralmente maus, mas que outrora não eram sempre percebidos como tais.

Como exemplo, pode-se citar a observância da lei do talião: «Dente par dente, olho por olho…» Para os homens primitivos, tal fórmula já era muito exigente; e isto, a dois títulos:

impedia que a pessoa danificada se compensasse, infligindo ao adversário dano maior do que o que recebera;

valia para todos os componentes da tribo ou população, tanto pequeninos e humildes como chefes e maiorais; estes não ficavam isentos de sanção para as suas culpas.

Pode acontecer também (é o que se dá freqüentemente em nossos dias) que os homens violem certos preceitos da lei natural (máxime os que concernem ao sexo) com «tranqüi­lidade de alma», como se não os conhecessem. Não seria isto uma prova de que realmente não há mandamentos ditados pela natureza a todos os homens? – Não; tal «tranqüilidade» se deve geralmente a um embotamento da consciência; esta, sendo freqüentemente contraditada e sufocada pelo próprio sujeito ou pelo ambiente em que vive, deixa de se fazer ouvir; tal silêncio vem a ser produto de violência, não podendo ser levado em conta para se avaliar o que é realmente a natureza humana. Na verdade, todo homem que não sofra influência deletéria, ouve em seu íntimo as mesmas normas espontâneas da lei natural.

Por conseguinte, a lei natural fica sendo norma objetiva da moralidade, norma capaz de regrar a conduta do homem em toda e qualquer situação.

Resta agora considerar outro aspecto – ainda mais deli­cado – da questão:

3. Consciência moral e magistério da Igreja

1. A Igreja não é uma sociedade meramente humana, mas, é o Corpo Místico de Jesus Cristo. Nela Cristo está pre­sente e vivo, não somente porque seus fiéis O conhecem e amam, mas de maneira própria, dita «sacramental»; o Senhor prolonga o mistério da Encarnação, difundindo a sua vida nos homens através dos sinais visíveis de sua Igreja. É impassível separar Cristo e a Igreja que dele se deriva ininterruptamente através dos Apóstolos e da sucessão apostólica até nossos dias.

Por isto o cristão procura «sentir com a Igreja», vibrar e pulsar com Ela.

2. Cristo confiou à sua Igreja o poder e a missão de ensinar, como se depreende de várias passagens bíblicas:

«Foi-me dado todo poder no céu e na terra. Ide, pois, e ensinai a todas as nações…, ensinando-as a observar todas as coisas que eu vos ordenei. E eis que eu estou convosco todos os dias até o fim do mundo» (Mt 28,18-20).

«Como o Pai Me enviou, assim Eu vos envio» (Jo 20,21).

«Recebereis a força do Espírito Santo, e sereis minhas testemu­nhas em Jerusalém, em toda a Judéia, na Samaria e até os confins da terra» (At 1, 8).

Ao magistério da Igreja Cristo quis garantir a sua assis­tência infalível, a fim de que não ensine erro algum em ma­téria de fé e costumes. É o que decorre das palavras do Senhor atrás citadas, principalmente da promessa: «Estou convosco todos os dias até o fim do mundo». A expressão «Estou con­vosco», na Bíblia Sagrada, é freqüentemente atribuída a Deus quando o Senhor confia uma tarefa importante e difícil aos homens; significa que Deus garante o sucesso da obra empre­endida. Tenham-se em vista passagens como

Ex 3,10-12: «Disse o Senhor a Moisés: ‘Vai envio-te a Faraó para que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel’. Moisés disse a Deus: ‘Quem sou eu para ir ter com Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito?’ Deus respondeu: ‘Eu estarei contigo…’»

Jz 6, 14-16: «O Senhor… disse a Gedeão: ‘Vai, e, com essa força que tens, liberta Israel das mãos de Madiã. Porventura. não sou eu que te envio?’ Gedeão respondeu: ‘ó Senhor, com que libertarei Is­rael? Minha família é a última de Manassés e eu sou o menor da casa de meu pai’. O anjo do Senhor disse-lhe: ‘Eu estarei contigo e tu derrotarás os de Madiã como se fossem um só homem’».

Jer 1, 8.19: «Disse o Senhor a Jeremias: ‘Não os temas, porque estarei contigo para te livrar – oráculo do Senhor… Eles comba­terão contra ti, mas não vencerão, porque Eu estarei contigo para te proteger – oráculo do Senhor’».

Cf. também Gen 21, 22; 26, 3; 31, 35; Jo 3, 2; At 10, 38.

Note-se também a promessa, feita a Pedro, de que as forças do inferno ou do mal não prevalecerão contra a Igreja (cf. Mt 16.18). A Igreja é assim «a coluna e a base da ver­dade» (1 Tim 3,15),

Em conseqüência, Jesus não receia identificar-se com os discípulos quando exercem o seu ministério:

«Quem vos ouve, a Mim ouve; e quem vos despreza, a Mim des­preza. Ora quem Me despreza, despreza Aquele que Me enviou» (Le 10,16).

«Quem vos recebe, a Mim recebe. E quem Me recebe, recebe Aquele que Me enviou» (Mt 10, 40).

Poder-se-iam multiplicar os textos bíblicos que asseguram a infalibilidade do magistério da Igreja.

3. O magistério infalível da Igreja se exerce de duas formas:

a) de maneira ordinária: é o que ocorre quando os Bispos, em união com o Romano Pontífice, ensinam uma dou­trina de fé ou de moral, intencionando propô-la como verdade ou norma obrigatória para todos os fiéis.

Quanto ao magistério ordinário do Romano Pontífice, note-se o seguinte: seus, ensinamentos, ainda que não sejam proferidos «ex cathedra» ou de maneira extraordinária, me­recem acatamento exterior e interior. Jesus rogou especial­mente por Pedro, e mandou-lhe confirmasse seus irmãos na fé (cf. Lc 22, 32). – O Papa pode manifestar-se por meio de encíclicas, (são os documentos mais solenes do magistério papal), bulas, «Motu proprio» ou outros pronunciamentos. O grau de acatamento que cada um desses documentos merece, deve-se depreender da intenção mesma do Sumo Pontífice revelada pelas palavras utilizadas no respectivo documento: às vezes, Sua Santidade tem a intenção de dirimir de maneira definitiva certas dúvidas; outras vezes, intenciona apenas pro­por à reflexão e ao estudo determinadas doutrinas.

A propósito vêm as palavras do Concílio do Vaticano II:

«Os Bispos, quando ensinam em comunhão com o Romano Pon­tífice devem ser respeitados por todos como testemunhas da verdade divina e católica. Devem os fiéis acatar uma sentença sobre a fé e a moral proferida por seu Bispo em nome de Cristo, e devem ater-se a ela com religioso obséquio do espírito. Esta religiosa submissão da vontade e da inteligência deve de modo particular ser prestada com relação ao autêntico Magistério do Romano Pontífice, mesmo quando não fala ‘ex cathedra’. E isso, de tal forma que seu magistério su­premo seja reverentemente reconhecido, suas sentenças sinceramente acolhidas, sempre de acordo com sua mente e vontade. Esta mente e vontade constam principalmente ou da índole dos documentos ou da freqüente proposição de uma mesma doutrina ou de sua maneira de falar» (Const. «Lumen Gentium» n.º 25).

b) de maneira extraordinária: é o que se dá por oca­sião das definições solenes emanadas de um Concílio Ecumênico ou de um pronunciamento «ex cathedra» do Bispo de Roma.

Deve-se frisar que o magistério infalível da Igreja não se limita aos casos de definições extraordinárias, pois estes são raros na história da Igreja. Se somente em tais ocasiões o magistério fosse infalível, falha teria sido a obra de Cristo.

O magistério ordinário, constante e universal dos Bispos e, em particular, do Bispo de Roma, é o órgão autêntico pelo qual Cristo continua a ensinar aos homens através dos séculos. É claro, porém, que os Bispos, ao se pronunciar, não têm sempre em mira ensinar teses definitivas e irreformáveis. A autoridade de suas proposições deve-se depreender do texto das fórmulas que utilizam; a cada qual, porém, se deve prestar o acatamento respectivo.

4. Ademais o cristão não se deve preocupar com casu­ística e minimalismo em matéria de adesão à Igreja. Importa­-lhe ser membro do Corpo Místico de Cristo não apenas pelo cumprimento de suas estritas obrigações, mas também pelo seu modo íntimo de sentir e pulsar com a Igreja; é a vida da Igreja – a qual é a vida do próprio Cristo – que o cristão procura prolongar e fecundar em seu íntimo. Em uma pala­vra: o cristão adere à Igreja não somente por vínculos jurí­dicos, mas também por uma comunhão de amor e vida; em­penha-se por assimilar a mente da Igreja, e não apenas a letra de seus pronunciamentos.

Para se ilustrar quanto são mesquinhos a casuística e o minimalismo em relação ao magistério da Igreja, pode-se citar a história do jansenismo.

Em 31 de maio de 1653, o Papa Inocencio XI condenou cinco pro­posições da obra «Augustinus» de Jansênio, a saber:

1) Há mandamentos de Deus que, por falta da graça necessária, não podem ser observados nem mesmo pelos justos;

2) O homem, na condição atual, não pode resistir à graça in­terior.

3) Mérito e demérito pressupõem somente liberdade de coação física, não liberdade de necessidade interna.

4) Os semipelagianos erraram, ensinando que a vontade humana pode ou resistir à graça ou aderir a ela.

5) É um erro semipelagiano afirmar que Cristo morreu por todos os homens.

Os jansenistas responderam a esta condenação, dizendo que o Papa tinha toda razão de condenar tais sentenças, pois eram eviden­temente heréticas. Acrescentavam, porém, que eles não as entendiam no sentido em que o Papa as entendera e condenara. Por isto, conti­nuaram a ensinar as falsas doutrinas acima.

Em sua sutileza de espírito, quiseram também distinguir entre a «quaestio iuris» e a «quaestio facti» (questão de direito e questão de fato). Diziam, pois, que a Igreja é infalível quando decide se tal ou tal doutrina em si é herética ou não; mas não é infalível quando julga se tal ou tal teólogo professa essa doutrina; neste último caso, frisavam, a Igreja não pode exigir um consentimento interno, mas apenas um silencio obsequioso.

Assim, recorrendo a cavilações, os jansenistas solapavam o ma­gistério da Igreja, embora mantivessem um respeito formal (ou vazio) ao mesmo.

O jansenismo tem sido bastante repudiado até os nossos tempos; causou grandes males à Igreja. É para desejar que a casuística e o minimalismo dos jansenistas em relação ao magistério da Igreja não revivam em nossos dias.

5. Mais: o discípulo de Cristo sabe que Deus falou e fala aos homens por meio dos homens e de sinais objetivos compreensíveis a todos. O mistério da Encarnação (ou de Deus que se faz homem para se revelar sensivelmente) domina toda a história da salvação, marcando-a profundamente tanto antes como depois de Cristo. Deus não quis que a sua palavra ficasse entregue à arbitrariedade de cada um dos respectivos ouvintes ou leitores, pois destarte se esfacelaria o depósito da Revelação.

A história ensina que a Reforma luterana, apregoando o livre exame, ou seja, a livre interpretação das Escrituras e da Palavra de Deus, se fundamentou no mais inconsistente dos princípios: se Lutero atribuiu a si mesmo o direito de interpretar a Palavra de Deus segundo o seu bom senso sub­jetivo, os discípulos de Lutero, segundo a escola mesma do mestre, arrogaram a si análogo direito: desvincularam-se de Lutero fundando novas e novas denominações religiosas; dei­xaram a Reforma de Lutero para fazer reformas da reforma.

O princípio do livre exame abre, pois, a porta para todo sub­jetivismo, além de contradizer às afirmações bíblicas que ga­rantem ao magistério da Igreja a infalível assistência do Es­pírito Santo.

Requer-se, pois, que o cristão dê adesão aos pronuncia­mentos do magistério da Igreja inspirando-se, antes do mais, em sua fé. É a fé que introduz o homem na Igreja e somente a fé o sustenta. «O justo vive da fé», diz três vezes São Paulo (Rom 1,70; Gál 3,11; Hebr 10,38). Não se pode pretender viver a vida cristã recorrendo apenas a critérios de razão e sabedoria humanas.

6. Eis algumas considerações que a propósito da auto­nomia da consciência se podem tecer nesta hora, em que tanto se valoriza o julgamento pessoal de cada indivíduo em matéria religiosa.

Para terminar, sejam aqui citadas as palavras valiosas do Cardeal Charles Journet, um dos grandes teólogos de nossos dias, que escreveu sobre o debatido assunto:

«É um contra-senso, para um filho da Igreja, opor à autoridade da encíclica a infalibilidade de sua consciência individual. Nenhuma consciência é infalível. A consciência exige ser formada; cada um de nós é responsável diante de Deus pela formação mesma de sua pró­pria consciência. ‘Se a luz que está em ti, é trevas, quão espessas serão as próprias trevas?’ (Mt 6,23). São Paulo, tão seguro do Evan­gelho que anunciava ao mundo, recusava-se a julgar a si próprio: ‘É verdade que de nada me acusa a consciência; contudo nem por isto sou justificado; meu Juiz é o Senhor’ (1 Cor 4,4)».

Journet, a seguir, cita e comenta a frase do filósofo Jean­-Jacques Rousseau ( 1778)

«Consciência! Consciência! Instinto divino! Juiz infalível do bem e do mal … »

Diante destas exclamações, Diderot, outro filósofo nacio­nalista, contemporâneo de Rousseau, observava que bem se sabia que, o que quer que Rousseau fizesse, teria sempre a sua consciência em seu favor!,

(Veja-se «SEDOC» n° 8, fevereiro de 1969, col. 1150).

Estes tópicos chamam a atenção para a necessidade que incumbe a todo cristão sincero, de procurar formar a sua consciência segundo as normas objetivas pelas quais Deus se comunica aos homens.; em caso contrário, pode ser vítima de ilusões. A tarefa de ouvir a Deus mediante os homens é, por vezes, molesta e árdua. É preciso lembrar, porém, que ninguém se torna grande. sem superar a si mesmo, sem aceitar coisas duras, a fim de ser coerente com a doação generosa a uma Grande Causa!

O tema «consciência» tem sido longamente estudado nos últimos anos em vista das novas teorias disseminadas pela Ética da situação. Da ampla bibliografia, podem-se recomendar:

Jean-Marie Aubert, «Loi de Dieu, Lois des hommes», em «Le Mystère Chrétien» n° 7. Desclée 1964.

Philippe Delhaye, «La Conscience Morale du Chrétien», em «Le Mystère Chrétien» n° 4. Desclée 1964.

Bernhard Haring «A Lei de Cristo». São Paulo 1960, t. I, pág. 198­-255 e t. II, pág. 78-82.

«Pergunte e Responderemos» 40/1961, pág. 160-179.

O assunto foi reavivado pelos debates em torno da encíclica «Hu­manae Vitae)». O documentário referente a tais debates se encontra colecionado em «SEDOC» n.° 8, fevereiro de 1969.

APÊNDICE

Na audiência geral de 12/11/69, o S. Padre Paulo VI pro­feriu importante alocução sobre «consciência», alocução da qual vão aqui transcritos os seguintes tópicos:

«É preciso façamos uma observação sobre a supremacia e exclu­sividade que hoje se quer atribuir à consciência na orientação do comportamento humano. Ouve-se freqüentemente repetir, como afo­rismo indiscutível, que toda a moralidade do homem deve consistir em seguir a própria consciência. Afirma-se isto para emancipar o homem tanto das exigências de uma norma extrínseca quanto da obediência a uma autoridade que queira ditar a lei à atividade livre e espontânea do homem; este (dizem) deve ser a sua própria lei, deve ser independente de qualquer intervenção em seu agir. Nada de novo diremos àqueles que vêem nesse principio a norma de sua vida moral, se lhes afirmamos que ter por guia sua própria consciência não somente é coisa boa, mas é também um dever. Quem age contra a consciência, está fora do reto caminho (cf. Rom 14, 23).

Mas é preciso, antes do mais, realçar que a consciência, em si mesma, não é arbitra do valor moral dos atos que ela sugere. A consciência é a intérprete de uma norma interior e superior; ela não cria por si essa norma. Ela é iluminada pela intuição de certos prin­cípios normativos, inatos na razão humana (cf. S. Tomás, Suma Teo­lógica I 79,12 e 13; 1111 94, 1). A consciência não é a fonte do bem e do mal; ela é a audição, a ausculta de uma voz que se chama muito adequadamente ‘a voz da consciência’; ela lembra a conformidade que uma ação deve ter com uma exigência extrínseca ao homem, a fim de que o homem seja verdadeiro e perfeito. Isto quer dizer que a consciência é a intimação subjetiva e imediata de uma lei, que nós devemos chamar natural, ainda que muitos hoje já não queiram ouvir falar de lei natural. Não é a relação com essa lei, compreendida em seu significado autêntico, que faz nascer no homem o senso dres­ponsabilidade? E, com o senso de responsabilidade, … o senso da boa consciência e do mérito, ou do remorso e da culpa? Consciência responsabilidade são dois termos ligados um ao outro.

Em segundo lugar, devemos observar que a consciência, para ser válida norma da atividade humana deve ser reta, isto é, segura de si mesma e verídica, não incerta, não culpavelmente errônea. Infeliz­mente esta última hipótese ocorre facilmente, dada a fraqueza da razão humana quando é deixada a si mesma, quando não é educada.

A consciência precisa de ser educada. A pedagogia da consciência é necessária… A consciência não é a única voz que possa orientar a atividade humana; a sua voz se esclarece e corrobora quando a voz da lei e, portanto, a da autoridade legítima se unem à sua voz. A voz da consciência, por conseguinte, não é sempre infalível, nem objeti­vamente suprema. E isto e muito particularmente verdade no domínio da atividade sobrenatural em que a razão não basta para interpretar a voz do bem, mas deve recorrer à fé para ditar ao homem a norma da justiça desejada par Deus mediante a revelação: «O homem justo, diz São Paulo, vive da fé» (Gál 3,11). Para caminharmos em linha reta, quando andamos de noite, isto é, quando progredimos no mis­tério da vida cristã, os olhos não bastam; é necessária a lâmpada, é necessária a luz. E essa luz de Cristo não deforma, não mortifica, não contradiz a luz da nossa consciência, mas ela ilumina a nossa consciência, tornando-a apta a seguir o Cristo no caminho reto de nossa peregrinação em demanda da visão eterna.

Procuremos, pois, agir sempre com uma consciência reta e forte, iluminada pela sabedoria de Cristo».