Conversões: o cardeal John Henry Newman

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 342/1990

 

Em síntese: Aos 11/08/90 ocorreu o primeiro centenário da morte do Cardeal John Henry Newman (1801-1890). Converteu se do Anglicanismo ao Catolicismo em 1845, após sincera e árdua procura da verdadeira face do Cristianismo. Nem o Protestantismo nem o Catolicismo lhe sorriam, pois aquele lhe parecia ceder ao liberalismo e ao racionalismo, enquanto este era menosprezado na Inglaterra como acervo de superstições romanas. Newman pensou numa Via Média, que seria a vivencia da doutrina e da espiritualidade dos Padres da Igreja ou dos grandes escritores e Santos dos primeiros sécu­los; em conseqüência, fundou o Movimento de Oxford, onde, com amigos anglicanos, se dedicava ao estudo da literatura e da história da Igreja Antiga.

– Ora precisamente essa pesquisa o levou a ver que não havia senão uma conclusão lógica: o retorno à igreja-Mãe ou à Igreja Católica, confiada por Jesus a Pedro e seus sucessores, os Bispos de Roma: tanto o Arianismo (séc. IV), o Nestorianismo e o Monofisismo (séc. V) quanto o Protestantis­mo (séc. XVI) eram heresias, que haviam dito Não ao berço do Cristianismo. De resto, Deus nunca teria deixado a sua Santa Palavra entregue ao léu ou desprotegida contra as oscilações e o subjetivismo dos homens; se no Cato­licismo moderno há algo que não se encontrava na Igreja nascente, trata-se de um desabrochar de semente ou do crescimento homogêneo de um orga­nismo; a Igreja é um corpo vivo, cuja vitalidade produz sempre novas expres­sões de si mesma, sem se deteriorar ou sem perder a sua identidade.

Convertido em 1845, Newman levou existência atribulada, pois nem sempre foi compreendido; houve quem o tivesse na conta de elemento pe­rigoso para o Catolicismo na Inglaterra. Como que em desagravo desses mal-entendidos, o Papa Leão XIII em 1879 nomeou Cardeal o Pe. John Henry Newman, o que suscitou os aplausos dos católicos de língua inglesa em geral. – Vítima dos achaques da idade, Newman faleceu santamente, após viver destemidamente o epitáfio que ele mesmo formulou: “Ex umbris et imaginibus in veritatem. – Das sombras e imagens para a verdade”.

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Aos 11 de agosto de 1890 falecia o Cardeal John Henry Newman, ho­mem singular, que na sua época nem sempre foi entendido, mas cujo vulto emerge à distancia, como o de uma figura brilhante. É portador de mensa­gem profunda, a ponto de merecer do Papa João Paulo II uma Carta come­morativa, dirigida ao Arcebispo de Birmingham, Mons. Maurício Couve de Murville, com a data de 18/06/90.

Visto que a vida e o pensamento do Cardeal Newman conservam ple­no significado até hoje, dedicar-lhes-emos as páginas subseqüentes.

1. O itinerário de vida e pensamento

1.1. Infância e período estudantil

Aos 21/02/1801 nasceu em Londres o menino John Henry Newman. O pai John Newman era banqueiro, pertencente a antiga família inglesa, independente em matéria de religião. A mãe, Jemina Foudrinier, era de origem francesa e de religião calvinista. Os primeiros anos de sua meninice decorreram em ambiente tipicamente inglês, que lhe incutiu desconfiança em relação a tudo o que não fosse autóctone ou insular. Foi batizado na Comunhão Anglicana aos 9 de abril de 1801.

Recebeu de sua mãe uma educação bíblica, que avivou nele o senso religioso e a imagem de um Deus bom, que ele havia de procurar esclarecer durante a vida inteira. Ao mesmo tempo, John Henry, desde menino, mos­trou vontade tenaz[1] e grande amor à verdade. Este resumiria todo o progra­ma de sua vida, pois Newman mandou colocar sobre o seu túmulo o epitá­fio: “Ex umbris et imaginibus in veritatem. – Das sombras e imagens para a verdade”.

O itinerário para a Verdade, que é Deus, Newman o percorreria em duas etapas ou duas conversões…

A primeira deu-se aos quinze anos de idade. Como todo adolescente, John Henry tornara-se um tanto auto-suficiente, rebelde à autoridade dos pais, crítico em relação à própria religião; a leitura de livros racionalistas deixara-lhe dúvidas na mente. Desejava cultivar os valores éticos, mas desli­gado da prática religiosa. Ora em fins de 1816, sob o influxo do pastor cal­vinista Walter Mayers, experimentou um acontecimento de importância capital, que ele mesmo chamou “Conversão”: os princípios religiosos voltaram a ter significado para ele; Deus deixou de ser uma noção abstrata para tornar-se uma Presença viva, concreta, que lhe pedia fidelidade e amor. Newman desde então procurou responder a Deus, levando uma vida cada vez mais voltada para os valores transcendentais e norteada pelo programa: Servir a Deus… e servir à custa de qualquer sacrifício, como ele mesmo es­creveu:

“A essência da verdadeira conversão consiste na entrega de si; uma entrega sem reservas ou condições. Eis o que não quer admitir a maioria daqueles que vêm a Deus. Gostariam de salvar-se, mas a seu modo… sob condições, levando consigo o que lhes pertence. Ao contrário, o verdadeiro espírito de fé leva a esquecer de si e olhar para Deus.. (The testimony of conscience. Parochial and plain sermons V, p. 241).

O propósito de entrega a Deus levou John Henry à resolução de abra­çar o celibato, para mais livremente servir ao Senhor e aos irmãos. Tal ati­tude era totalmente estranha aos anglicanos, aos quais podia chegar a pare­cer uma invenção diabólica e ridícula da Igreja de Roma. Newman foi fiél ao seu propósito com tenacidade inglesa, colhendo daí os frutos de uma vida que se foi desenvolvendo cada vez mais homogeneamente em deman­da do Supremo Bem.

Em dezembro de 1816 John Henry foi matriculado no Trinity College de Oxford, Universidade que tinha a divisa: “Dominus illuminatio mea. – O Senhor é minha luz”; estes dizeres falavam profundamente ao jovem estu­dante. Destacou-se entre os colegas, apaixonado por literatura, música e também pela matemática. Aos 21 anos de idade foi feito Fellow de Oriel College em conseqüência de aprovação em concurso, o que significava gran­de êxito na carreira universitária; doravante teria independência material, fama, relações brilhantes com os meios intelectuais.

1.2. Ordenação anglicana, Liberalismo e Volta às Fontes

Entretanto, John Henry mantinha seu espírito religioso, embora vives­se no mundo dos estudos mais variados (matemática, poesia, geologia, mine­ralogia, hebraico, história da Igreja…). Pediu a ordenação de ministro an­glicano, que ele recebeu aos 13/06/1824, registrando então:

“Acabou-se. Quando as mãos episcopais me foram impostas, estreme­ceu-me o coração. Tão terríveis são as palavras ‘Para sempre!” (Auto­biografia).

Foi nomeado Coadjutor da paróquia anglicana de São Clemente, que contava dois mil paroquianos, na maioria indigentes. Reconstruiu a igreja; reformou o canto; fundou uma escola gratuita e iniciou sua carreira de pre­gador, que ele assim entendia:

“O pregador que visa, antes do mais, a consolar, parece desconhecer a finalidade do seu ministério. A santidade é a grande meta. Há de haver luta e trabalho”.

Acontece, porém, que os teólogos de Oriel professavam o protestantis­mo liberal. Naquela época, o liberalismo equivalia ao cientificismo em maté­ria de filosofia, ao naturalismo na Moral, ao racionalismo em religião; valori­zava a razão, a ponto de negar a Revelação Divina. Em 1879, ao ser recebido no Colégio Cardinalício em Roma, Newman recordava:

“Por trinta, quarenta, cinqüenta anos tenho resistido.. ao espírito do liberalismo na religião. Nunca a Igreja necessitou mais urgentemente de sol­dados que pugnem contra ele, do que neste momento em que o erro se espa­lha sobre o mundo todo como um engodo… O liberalismo religioso é a doutrina segundo a qual. . . uma crença é tão boa quanto a outra. Não se coaduna com o reconhecimento de uma religião como verdadeira; ensina até que todas devem ser toleradas, porque são todas apenas uma questão de opinião. A religião revelada não é uma verdade, mas um sentimento, um gos­to… Cada indivíduo tem o direito de interpretá-lo como lhe agrada à fan­tasia”.

Rompendo com o protestantismo liberal, Newman resolveu voltar-se para os Padres da Igreja.[2] Desde os tempos de escola, lera trechos de S. Ata­násio (+ 373), S. Ambrósio (+ 397), S. Agostinho (+ 430) e outros, que muito lhe falaram. Os primeiros séculos tornaram-se-lhe o paradigma ou o ideal do Cristianismo. Quis vivificar sua fé anglicana ao contato dos mensageiros mais próximos de Cristo e dos Apóstolos.

Em dezembro de 1832 partiu Newman para um cruzeiro no mar Mediterrâneo. Observou o catolicismo da ilha de Malta e da Itália, experi­mentando reações contraditórias: de um lado, estimou profundamente o contato com os santuários de Roma; de outro lado, porém, os preconceitos antipapistas causaram-lhe aversão à Roma católica do século XIX. Na Sicí­lia contraiu uma doença grave, que lhe suscitou uma crise religiosa: teria ofendido a Deus e merecido um castigo? Reagiu a esta indagação, certo de que Deus o amava e lhe reservava ainda anos de vida para trabalhar por sua Causa.

1.3. O Movimento de Oxford

Voltando à Inglaterra, Newman decidiu empenhar-se no revigoramen­to do Anglicanismo, do qual ele se considerava ainda seguidor. Os anglica­nos, na Inglaterra, se distribuíam por três correntes:

– a “Baixa Igreja” (Low Church), na qual nascera Newman, influen­ciada pelo calvinismo e o protestantismo mais radical do continente europeu;

– a “Alta Igreja” (High Church), mais tradicional e ritualista, ligada à Coroa da Inglaterra, a tal ponto que o monarca e o Parlamento decidiam so­bre assuntos religiosos; estava em declínio numérico;

– a “Igreja liberal”, em ascensão numérica, aproximando-se do rela­tivismo e do indiferentismo doutrinários.

Newman percebeu que a corrente influenciada pelo protestantismo europeu, professando o livre exame da Bíblia e forte individualismo, leva­va à desintegração do Cristianismo e à dissolução do Credo. Quanto à Alta Igreja, dependente como era do poder governamental, corria o risco de ser desviada de seus objetivos propriamente religiosos; além disto, acontecia que os Bispos e ministros anglicanos, satisfeitos com a prosperidade mate­rial, tendiam a considerar suas funções como meio de vida e não como mis­são apostólica.

Por conseguinte, Newman via claramente que era preciso renovar e reformar. Que princípios adotaria neste setor? – Não os do protestantismo clássico nem os da Igreja Católica (que lhe parecia desvirtuada e obscuran­tista), mas os de uma Via Media, que era a dos Santos Padres dos primeiros séculos; estes haviam sabido guardar a pureza da fé e da Moral do Evangelho, opondo-se tanto às heresias decorrentes do subjetivismo e do liberalismo da época quanto ao poder imperial, que se ingeria indevidamente nos assuntos da Igreja. Assim justificava Newman a sua opção:

“Eu comparava aquele Cristianismo fresco e vigoroso dos primeiros séculos com o Anglicanismo dividido e ameaçado. . . A vitória sobre si mesmos que seus ascetas manifestavam, a paciência de seus mártires, a irre­sistível energia de seus Bispos, o ritmo alegre de seus progressos, me exalta­vam e envergonhavam a um tempo. Pensava: Olha este quadro e aquele! Por minha Igreja (anglicana) sentia afeto, mas não ternura; experimentava desa­lento ante seu futuro, cólera e desprezo diante de sua perplexidade inerte” (Apologia por Vita Sua).

No seu empreendimento de retornar às fontes patrísticas para escapar do indiferentismo e do ateísmo práticos, Newman pôde contar com a cola­boração de amigos como Keble, Froude, Rose, Perceval, Palmer, Pusey.. . Assim se originou o chamado “Movimento de Oxford”, já que os seus arau­tos moravam em Oxford junto ao Oriel College. Voltaram-se para três metas principais: 1) a independência da Igreja em relação ao Estado; 2) a luta con­tra o liberalismo, difundindo a doutrina dos Santos Padres e procurando fundamentar a devoção sobre as grandes verdades da fé; 3) o afervoramento dos clérigos anglicanos e dos leigos, caídos no aburguesamento e no pragma­tismo.

Para atingir seus objetivos, Newman resolveu publicar uma série de “Folhetos para o Tempo Presente” (Tracts for the Present Time); donde o nome de Tractarianismo dado ao Movimento de Oxford. O primeiro desses folhetos veio a lume aos 19/09/1833 com o título: “Pensamentos sobre os Encargos confiados ao Ministério Sagrado”, obra dirigida aos clérigos angli­canos a fim de lhes avivar a consciência dos valores sagrados, da sucessão apostólica e da ação do Espírito Santo na Igreja.

O Movimento de Oxford revolveu e perturbou profundamente o An­glicanismo; devia levar a uma renovação da teologia, da piedade e da vida sacramental. O reitor do Oriel College, decepcionado pelo desenrolar dos acontecimentos, desentendeu-se com Newman e não lhe confiou mais ne­nhum aluno. Partidários e adversários concordaram em dizer que nunca se vira, na multissecular Universidade, alguém exercer tamanha influência. Na paróquia da Universidade, da qual era Vigário, Newman pregava todos os domingos à tarde perante professores e alunos apinhados no templo; desta oratória sagrada resultaram dez volumes, de enorme tiragem e muito esti­mados até nossos dias.

1.4. A caminho da segunda conversão

A evolução religiosa de Newman processava-se homogeneamente, mas com lentidão. Dois obstáculos se lhe opunham fortemente:

– os preconceitos anti-romanos, disseminados na Inglaterra. Newman acreditava que o Papa era o Anticristo, e a Igreja Católica a prostituta da Babilônia;

– a sensibilidade, que o ligava à Comunhão Anglicana, na qual fora ba­tizado e na qual tinha sua paróquia e seus amigos.

Doutro lado, o Catolicismo na Inglaterra nada tinha de atraente para os olhos humanos: subsistia num resto de cristãos minguados por três séculos de discriminação e perseguição; eram indivíduos de pouca cultura por lhes ser vedado o acesso às Universidades, geralmente desprezados pelos seus con­cidadãos como maus patriotas, adeptos de grosseira superstição italiana, de espírito retraído e tacanho. Por conseguinte, voltar-se para o Catolicismo na Inglaterra seria enorme sacrifício para um cidadão inteligente e cioso da sua identidade britânica.

Nesse impasse, qual seria a força motriz do comportamento de Newman?

– De um lado, a oração e a intimidade com Deus; Newman muito esti­mava o aforismo: “Solus cum solo. – A sós com Aquele que é único”.

– De outro lado, fortalecia-o o amor à Verdade. Desde a sua primeira conversão (quando menino), Newman fizera um pacto tácito com a Verda­de, que é Deus; conseqüentemente resolvera nunca fechar os olhos à Verda­de, mas segui-la à custa de qualquer sacrifício, em absoluta fidelidade. Eis alguns testemunhos de sua pena:

“Nossa liberdade consiste em sermos cativos da verdade” (Loss and Gain).

“Meu desejo foi ter a Verdade como a amiga mais cara e não ter outro inimigo senão o erro” (The Via Media).

Após abjurar o Anglicanismo, escrevia Newman aos antigos compa­nheiros de estudo:

“Tendes um destino, o destino da Verdade. A Verdade é vossa senho­ra; e não vós, os senhores da Verdade; deveis ir aonde ela vos leva” (Difficulties of Anglicans I).

No intuito de servir à Verdade, Newman prosseguiu na Via Media, ou seja, na escola dos Padres da Igreja e do Cristianismo dos primeiros séculos, estes pareciam-lhe estar isentos tanto das mutilações protestantes quanto das “deteriorações romanas”, Dizia:

“Nós, os filhas da Santa Igreja… temos apenas uma voz, aquela única voz que foi da Igreja desde os primórdios” (Letters II).

Da lição dos Santos Padres aprendia grandes ensinamentos, que contra­diziam ao liberalismo racionalista dos “evangélicos”: a necessidade dos dogmas, a visibilidade da Igreja, os sacramentos como canais da graça, a im­portância da hierarquia eclesiástica.

Em 1841 Newman tentou demonstrar que era possível continuar no Anglicanismo (que amava), adotando teses do Catolicismo ou de Roma: pu­blicou o 90° Tract, que versava sobre os 39 Artigos da Fé Anglicana e pre­tendia evidenciar que tais artigos, em sua redação vaga e flexível, comporta­vam as verdades professadas por Roma: se algo condenavam, eram mais abusos do que dogmas romanos. Levantou-se então tremenda borrasca: os 42 Bispos anglicanos e a Universidade de Oxford condenaram o folheto re­volucionário, que lembrava à Comunhão Anglicana as origens apostólicas do Cristianismo; no seu afã de “descatolicizar” o Anglicanismo, os prelados in­gleses ordenaram um Bispo anglicano para Jerusalém, com jurisdição sobre os luteranos.

O progresso dos estudos pôs Newman mais e mais em contato com a história dos dogmas e das heresias, levando-o à convicção de que Roma e Cantuária representavam duas atitudes dos antigos cristãos: Roma, a dos ortodoxos; e Cantuária, a dos hereges. Escreveu:

“Logo descobri que os únicos argumentos que tornavam o anglicanis­mo defensável, vinham a ser fortaleza para as heresias antigas, e que a justi­ficação dos antigos Concílios se tornava apologia convincente para o Concí­lio de Trento. Dificílimo provar que eutiquianos e monofisitas fossem here­ges, a menos que o fossem também os protestantes e anglicanos; era difícil encontrar razões contra os Padres de Trento que não valessem contra os Padres de Calcedonia; difícil condenar os Papas do século XVI sem também condenar os do século V. O drama da religião – lutar entre erro e verdade – era sempre um e o mesmo. Os princípios e processos da Igreja de hoje são os da Igreja de então; os princípios e processos dos hereges de então são idên­ticos aos dos protestantes de hoje. Descobri, quase aterrorizado, a semelhan­ça tremenda… entre os anais mortos do passado e a crônica febril do pre­sente… De que serviria então continuar a controvérsia, defender minha po­sição, se, afinal, eu apenas forjava argumentos a favor de Ario e Futiques, e me tornava advogado do diabo contra Atanásio, o sofredor, e Leio, o gran­de? Esteja a minha alma com os Santos! Ousaria levantar a mão contra eles?” (Difficulties of Anglicans).

Separado da comunhão com o corpo da Igreja, o Anglicanismo parecia a Newman uma seita; nacional, bairrista, como o Donatismo na África do século IV. Assim como esses hereges antigos se haviam afastado da comu­nhão universal dos fiéis para formar conventículos regionais, assim no século XVI os ingleses se haviam separado do orbe católico para fundar sua Igreja, bem inglesa. Daí o dilema: ou os donatistas não eram hereges ou os anglicanos também o eram…

Chegando a tais conclusões, movido pela sinceridade de seus estudos, Newman não podia deixar de se apavorar. Havia de se debater durante cinco anos num conflito interior, preso por laços afetivos ao Anglicanismo de suas origens e, ao mesmo tempo, atraído pela luz da coerência e da lógica para a Igreja-Mãe confiada ao pastoreio do Bispo de Roma. Essa dilaceração haveria de assumir forma mais clara em sua mente, que aos poucos veio a formular o dilema nos seguintes termos: “Ou o Catolicismo romano ou o ateísmo”. Em 1840 escrevia:

“Começo a recear muito que nenhuma corporação religiosa tenha vigor suficiente para vencer a coalisão do mal, afora a Igreja Católica” (Letters Il).

E em 1845: “Desde anos tenho convicção crescente de que não há meio-termo entre o Panteísmo e a Igreja de Roma”.

A Via Media aparecia assim como uma utopia ou algo de impossível.

1.5. Auge e desfecho da luta interior

Rejeitado pelo Anglicanismo, mas ainda não filiado à Igreja Católica, Newman deixou a Universidade de Oxford e sua paróquia de St. Mary, reti­rando-se para Littlemore, subúrbio campestre de Oxford. Acompanhado por alguns amigos, passou a viver uma existência quase monacal em pobreza, oração, penitência e estudo. Chegava assim ao ápice de seu drama interior: duvidava demais do Anglicanismo para nele continuar, mas também duvida­va demais do Catolicismo para nele ingressar. Em particular, atormentava-o a diferença entre o Catolicismo moderno e o Cristianismo primitivo: não teria havido “inovações romanas” em matéria de fé? Ou essas aparentes inovações poderiam ser tidas como o desabrochar normal da fé primitiva, devido ao aprofundamento cada vez mais lógico e vivo das verdades revela­das? Haveria hiato e corrupção ou continuidade e desenvolvimento? A ver­dade à qual se entregara, adolescente, era algo de estagnado e petrificado na letra da Bíblia ou algo de vivo e pujante, que haveria de germinar, crescer e frutificar no seio fecundo da Igreja?

Para respondera tais dúvidas, Newman resolveu continuar a estudar. Des­se estudo, feito horas a fio, de pé, resultou a obra “Essay on the development of Christian Doctrine” (1845). Este livro genial apresenta a seguinte ex­planação:

Em vez de procurar o verdadeiro Cristianismo citando textos da Bíblia apenas, interroguemos a história, mestra da verdade. Acompanhemos o desen­volvimento do Cristianismo desde as suas origens. . . Ora, pondera Newman, é evidente que o Cristianismo, desde os seus primórdios até o século XVI (épo­ca de Lutero, Calvino, Zvinglio, Knox…) nunca foi protestante; as principais teses do protestantismo – sua noção de fé, de culto espiritual, a negação da efi­cácia dos sacramentos e da Igreja visível – não se encontram no Cristianismo antigo; tais doutrinas são proposições pretensamente deduzidas da S. Escritura com dezesseis séculos de atraso. Sim; é certo que o Cristianismo primitivo não se pautava pela Bíblia apenas, interpretada ao sabor do livre exame de cada crente, mas o Cristianismo antigo vivia da Palavra de Deus oral e escrita; lia a Bíblia no contexto da pregação dos Apóstolos e dos Bispos sucessores dos Apóstolos. Os Apóstolos eram testemunhas de Cristo; os Bispos de outrora eram testemunhas dos Apóstolos e, mediante eles, de Cristo. Assim, por exemplo, no século II S. Ireneu (+ 202), Bispo de Lião (Gália), afirmava que a doutrina por ele ensinada fora recebida de seu mestre S. Policarpo (+156), Bispo de Esmirna (Ásia Menor), o qual, por sua vez, a recebera de S. João Evangelista, o qual a recebera diretamente do próprio Cristo. Havia uma cadeia de testemunhas que não admitiam interpretações privadas e subjetivas, mas ensinavam autoritativamente e exigiam fidelidade a esse ensinamento. Quando São Paulo, por exemplo, “percorreu a Síria e a Cilí­cia, confirmando as igrejas e ordenando-lhes que guardassem os preceitos dos Apóstolos e dos presbíteros” (cf. At 15,41; 16,4), está claro que estava tolhendo qualquer iniciativa de livre exame da Bíblia. São palavras de Newman:

“Os protestantes são constrangidos a dizer que a doutrina da Igreja nunca foi pura; nós dizemos que nunca se pôde deturpar. Nós acreditamos que uma promessa divina preserva a Igreja da corrupção doutrinal; eles, nin­guém sabe que promessa os anima a demandarem aquela pureza imaginária” (Essay …).

As diferenças (não essenciais) entre o Cristianismo primitivo e o Cato­licismo moderno, Newman as justifica mediante as seguintes ponderações:

Cristo não compara seu Reino a um aerólito, caído do céu e imobili­zado para sempre em inércia estéril; ele o compara, antes, a realidades dinâ­micas: o fermento, que penetra toda a massa (Mt 13,33), o grão de mostarda que se torna uma grande árvore (cf. Mt 13,31), uma semente que, lançada à terra, germina e cresce por si só (cf. Mc 4, 26-29). – Essas parábolas incutem claramente que o desenvolver-se da religião cristã não seria algo de artificial, mas algo derivado da própria índole do Cristianismo, correspondendo à sua necessidade de expansão vital. Tão rica e profunda é a mensagem cristã que só aos poucos puderam os homens penetrar o seu conteúdo, meditando as mesmas verdades sob ângulos diversos para descobrir todas as suas impli­cações.

A prova mais convincente de que apenas a letra da Bíblia não basta para fundamentar a fé cristã, prende-se à questão: por que consideramos inspirados por Deus os livros da Bíblia? Quem nos garante que tais livros – e somente esses – são a Palavra de Deus inspirada? – A resposta não está na Bíblia; ela se deriva da autoridade da Igreja, que faz eco à Palavra oral (anterior à Bíblia e intérprete da Bíblia).

Mas quem garante que a autoridade da Igreja é válida ou isenta de erros doutrinários? – Responde Newman: se Deus nos tivesse entregue a sua Revelação sem assegurar a sua transmissão fiel através dos tempos, teria feito obra inútil. Por conseguinte, Ele dotou a sua Igreja de assistência infa­lível, que permite ao Magistério discriminar, sem erros, se tal ou tal desen­volvimento da mensagem revelada é autêntico ou não. Deixar que cada um interprete a mensagem evangélica segundo o seu bom senso apenas, seria o mesmo que abrir as portas à anarquia doutrinal; supérflua teria sido a pró­pria Revelação Divina. Não existe unidade na doutrina sem um órgão res­ponsável pela verdade. Se o Cristianismo é a mensagem destinada aos ho­mens de todos os tempos e regiões, ele precisa de um magistério isento de erros por assistência divina; sem isto, o subjetivismo deteriora a mensagem, como atesta a história mesma do protestantismo. Escreve Newman:

“A idéia mesma de revelação implica um informante, um guia atual; bem mais, um informante e guia infalível. Dizem-nos que Deus falou. Onde? Num livro? Suspeitamo-lo a provas e sentimos decepção. Desaponta-nos aquele sacratíssimo e beatíssimo dom, não por defeito seu, mas porque o empregam para uma finalidade à qual não foi destinado. A resposta do etíope, quando S. Felipe lhe perguntou se entendia o que lia, é a mesma voz da natureza: como o poderei compreender, se não houver alguém que mo explique? A Igreja desempenha esse ofício; ela faz o que ninguém mais pode fazer, e tal é o segredo do seu poder (Essay…).

“Se voltassem à terra S. Atanásio ou S. Ambrósio, não há que duvi­dar a respeito da Igreja que reconheceriam como sua… Encontrar-se-iam mais a gosto junto a um S. Bernardo

(+ 1153), a um S. Inácio de Loyola (+ 1556) ou um pároco isolado em seu presbitério, com as irmãs de caridade ou com o povo iletrado diante do altar, do que com os seguidores de qual­quer outro Credo. Será mesmo lícito acrescentar que esses dois Santos, que ambos residiram em Tréviris – um como exilado, o outro como embaixador -, se porventura viajassem mais para o Norte e chegassem a uma outra cidade risonha (Oxford) situada entre bosques, prados verdejantes e ribeiros tran­qüilos, os Santos irmãos haveriam de se desviar de muitas naves majestosas, de claustros solenes e indagariam o caminho da capela onde a Missa é cele­brada na ruela populosa de um subúrbio abandonado”

(Essay… ).

Estas linhas perturbavam e escandalizavam aquela Oxford, tão ciosa de sua religião e de sua Universidade!

Por último, em seu Essay Newman considera a questão: como se pode ter certeza de que o desenvolvimento do Cristianismo se deu autenticamen­te, de modo que podemos encontrar a genuína fé cristã hoje na Igreja con­fiada a Pedro e seus sucessores?

– Em resposta, Newman retoma princípios já formulados por S. Vi­cente de Lérins (+449) no seu Commonitorium. Indica sete critérios, cuja convergência identifica e evidencia que a Igreja Católica atual é legítima her­deira da Igreja dos primeiros séculos: 1) conservação do mesmo tipo; 2) con­tinuidade de princípios; 3) poder assimilatório, sem perda da identidade original; 4) dedução lógica; 5) antecipação do futuro; 6) conservação do pas­sado; 7) contínuo vigor.

Todos estes critérios podem ser ilustrados pelo que ocorre no corpo humano. Este se desenvolve sem mudar de espécie ou de individualidade. Pequeninos são os membros da criança; maiores, os do adolescente; gran­des, os do adulto; todavia são os mesmos membros. Ora a Igreja é seme­lhante a tal tipo de organismo.

Quando ainda estava a redigir seu Essay, Newman recebeu a luz deci­siva sobre as questões que abordava, e concluiu que era lógico abraçar o Catolicismo. E decidiu fazê-lo: “A fé não é a conclusão de certas premissas, mas resulta de um ato da vontade, o qual, por sua vez, resulta da convicção de que acreditar é meu dever” (Carta a Wilberforce).

Como a recompensar o heroísmo de John Henry Newman, Deus en­viou-lhe um santo sacerdote, o Pe. Domenico Barberi, da Congregação Pas­sionista. Tratava-se de um sacerdote que sentia em si o apelo para trabalhar na Inglaterra; após muito esperar, foi enviado para lá pelos Superiores. Na manhã de 8 de outubro de 1845, escrevia Newman a Maria Giberne:

“O Pe. Domenico, Passionista, virá aqui esta noite. Ele não sabe da minha intenção: vem para ver um amigo meu, Dalgairns, que ele recebeu na Igreja há aproximadamente uma semana. Eu lhe pedirei para mim a mesma caridade” (Letters II).

Com efeito; às 11 horas da noite de 8 de outubro de 1845, o Pe. Do­menico della Madre di Dio chegava a Littiemore sob chuva torrencial; apro­ximou-se da lareira para secar as suas vestes. Uma porta abriu-se e o padre viu entrar um homem emagrecido por longos jejuns e difíceis pesquisas, e pálido de emoção. Quarenta e cinco minutos depois, Newman saía do pe­queno oratório, onde o Religioso acabara de ouvir a sua confissão. No dia seguinte, com os amigos recém-convertidos (Dalgairns e Saint-John) ou convertidos com ele (Stanton e Bowles), Newman assistiu à S. Missa e re­cebeu a Primeira Comunhão.

Dava-se assim um acontecimento longamente esperado por uns e de­plorado por outros. A Comunhão Anglicana perdia alguém que, mais do que outros, trabalhara para vivificá-la e restaurá-la. A Igreja Católica recebia alguém que, desde muito, a saudava como Mãe, embora repuxado por afe­tos diversos.

Logo após a sua segunda conversão, Newman rematou brevemente o seu Essay, cuja explanação ele não precisara de levar ao fim. Em conclusão, escrevia:

“E agora, caro leitor, breve é o tempo, longa a eternidade. Não afastes de ti o que aqui encontras; não o consideres apenas como assunto de contro­vérsia; não comeces a leitura decidido a refutá-lo… ; não te iludas ao ima­ginar que o que aqui está é fruto de decepção, do enfado, da inquietação, de melindres, da susceptibilidade ou de qualquer outra fraqueza.. Não decidas que a verdade é o que desejas seja verdadeiro. Breve é o tempo, longa a eter­nidade. Nunc dimittis servum tuum, Domine, secundum verbum tuum in pace. Quia viderunt oculi moi salutar tuum”.[3]

A 19 de novembro de 1845, Newman e amigos foram crismados por Wiseman, futuro Cardeal-arcebispo de Westminster. Newman tomou então o nome de Maria como nome de Crisma. As conversões do Anglicanismo ao Catolicismo naquela época eram freqüentes e numerosas.

Seis anos mais tarde, num de seus sermões Newman dava a ver quanta coragem era necessária para tornar-se católico na Inglaterra daquela época:

“A Igreja Católica não mais existia neste país e nem sequer uma sim­ples comunidade católica; apenas alguns sequazes da antiga religião, passan­do silenciosos e tristes, como recordações do que havia sido. Os católicos romanos eram não já uma seita, nem um corpo, por pequeno fosse ele, a representar a Grande Comunhão estrangeira -, mas um simples punhado de indivíduos, que se poderiam contar como seixos, ou como os destroços de um grande dilúvio; acontecia apenas que conservavam uma crença que ou­trora fora, na verdade, professada por uma Igreja. Aqui, um pupilo de pobres irlandeses, indo e vindo no tempo da sega, ou uma colônia deles alojada em bairro miserável da grande metrópole. Ali, talvez, uma pessoa adiantada em anos, que se via pelas ruas, grave, solitária, estranha – embora nobre no porte – que diziam ser de boa família e também católica romana. Certa casa antiquada de aparência lúgubre, cercada por altos muros, o portão de ferro, o jardim plantado de teixos – conheciam-na qual moradia de católicos ro­manos; mas, quem eram eles, que faziam, que se entendia ao qualificá-los de católicos romanos, ninguém sabia dizer – conquanto soasse mal o nome e cheirasse a hipocrisia e superstição. E também quando vagueávamos pela grande cidade, contemplando-a com os olhos curiosos de menino, porventu­ra topávamos hoje com uma capela de Irmãos Moravos ou uma assembléia de Quakers, e amanhã com uma capela de Católicos romanos; mas nela não se colhia informação alguma; apenas círios a arder, meninos vestidos de branco a balançar turíbulos; o que tudo isso significava, só se podia saber pelos volumes de Histórias e de Sermões protestantes; e estes não davam boas referências do catolicismo romano; antes, depunham que outrora havia desfrutado de poder e dele havia abusado… Semelhante a este, era mais ou menos o conhecimento que do cristianismo tinham os pagãos antigos. Per­seguiam os fiéis até que sumissem da face da terra, para, ao depois, chamá-los gens lucifuga, isto é, povo que fugia da luz do dia. Tais eram os católicos na Inglaterra, encontrados pelos cantos e becos, nos porões e nos sótãos, ou nos ermos campestres, segregados da população entre a qual viviam. Assim lobrigavam-nos, por entre névoas ou ao crepúsculo – como fantasmas ade­jando daqui e dali – os soberbos protestantes, senhores da terra. Por últi­mo, eles tanto se quebrantaram, tão desprezíveis se tornaram, que do pró­prio desprezo brotou a compaixão; os mais generosos dentre os tiranos en­traram a desejar conceder-lhes qualquer favor, convictos de que tais crendi­ces eram demasiado absurdas para jamais alastrarem-se novamente, e que os mesmos católicos, uma vez prestigiados civilmente, logo renunciariam a elas e delas se envergonhariam. Assim, por simples compaixão de nós, começa­vam a aviltar nossa doutrina perante o mundo protestante, a fim de que nossa própria estupidez, ou nossa descrença secreta, fizessem jus à mise­ricórdia”.[4]

Uma vez percorrido o itinerário espiritual de John Henry Newman, resumiremos o resto de sua vida sob o título seguinte:

1.6. O Mistério da Cruz

Nas suas primeiras semanas de católico, Newman visitou instituições católicas da Inglaterra. Acolheram-no cordialmente, mas infelizmente os católicos da época parecem não ter percebido que Deus os brindava com um dos grandes gênios do século XIX. Newman nem sempre foi bem enten­dido no seio da própria Igreja Católica; isto tornou doloroso, de novo modo, o resto de sua longa vida. Não lamentou sua conversão ao Catolicismo; ao con­trário, recordou-a sempre com muito carinho, mas sofreu incompreensões.

Em 1846 foi enviado a Roma pelo Bispo Mons. Wiseman, com o seu amigo Ambrose Saint-John, a fim de completar a sua formação católica e receber a ordenação de presbítero; esta se deu aos 26/05/1847. O Papa Pio IX estimulou-o a fundar casas da Congregação do Oratório de São Filipe Neri na Inglaterra para permitir aos sacerdotes católicos certa vida comunitá­ria. John Henry Newman executou este desígnio, estabelecendo o Oratório em Maryvale (1848), Birmingham (Alcester Street), Londres e Edgbaston (quarteirão de Birmingham), onde ficou até o fim da vida, excetuados os cinco anos (1854-58) que passou em Dublin como Reitor da Universidade Católica.

As suas tarefas acadêmicas e pastorais, como dito, não foram felizes: fundação da Universidade de Dublin, tradução da S. Escritura para o inglês, direção da revista The Rambler, fundação do Oratório em Oxford para acolher jovens universitários… Uma corrente de pessoas desconfiadas apre­sentava Newman como homem perigoso para o Catolicismo na Inglaterra.

Em 1879, porém, os horizontes se clarearam. O Papa Leão XIII, reco­nhecendo a genialidade e a fidelidade doutrinária do convertido, houve por bem nomear Cardeal o Pe. John Henry Newman. Toda a comunidade de língua inglesa, da Grã-Bretanha até a Austrália, regozijou-se com o fato. Newman não podia deixar de ser admirado por seu destemor, sua coerên­cia de vida e seu zelo pela verdade da fé.

Os últimos anos de sua existência foram marcados pelos achaques da velhice. No dia 9 de agosto de 1890 sofreu uma congestão pulmonar. . . e no dia 11 seguinte expirou serenamente, contando 89 anos e seis meses de idade. Em Londres, o Cardeal Manning, mais que octogenário, renunciara à pregação; não obstante, subiu ao púlpito e proferiu oração fúnebre, que começava, afirmando: “Acabamos de perder a nossa maior testemunha de fé”.

Newman foi sepultado em Birmingham, debaixo de uma lápide que resume seu itinerário espiritual: “Ex umbris et imaginibus in veritatem. Das sombras e imagens para a Verdade”. Com efeito, passara do protestantismo ao Catolicismo, e da fé à plenitude da visão da VERDADE, que é Deus!

Para terminar, seja citado um episódio do fim da vida de Newman.

Certa vez, a Sra. Jemina, fiel amiga do prelado, foi visitá-lo, acompanhada de um netinho; recomendou à criança que não fizesse perguntas indiscretas ao ancião. Todavia o menino, ao chegar à presença de S. Eminência, mos­trou-se curioso; Newman, que se deixava sensibilizar pelas crianças, indagou então do menino o que desejava saber. A criança interrogou então: “Que é maior: um Cardeal ou um Santo?” Ao que respondeu o ancião com sorriso: “Meu filho, um Cardeal é da terra, terrestre; um Santo é do céu, celeste”.

2. Conclusão

O vulto do Cardeal John Henry Newman, comemorado mais uma vez em 1990, é de grande eloqüência também para nossos dias. A sua mensagem é um testemunho inquebrantável de amor à verdade; embora esta não produza lucros materiais, mas, ao contrário, acarrete dissabores e sofrimen­tos (como no caso em foco), Newman soube ser-lhe fiel até o extremo. A propósito escreve o Papa João Paulo II na citada Carta dirigida ao Arcebispo de Birmingham em 18/06/90:

“Espero vivamente que este centenário suscite, no espírito de tantos que aspiram à verdade e à liberdade autêntica, uma renovada consciência das lições que podem ser tiradas da vida e dos escritos desse ilustre inglês, sacer­dote e Cardeal. Um homem leal e de sinceridade tão coerente não pode­ deixar de inspirar e atrair muitos outros para o ideal ao qual ele servia fielmen­te. Nem todos concordavam com as importantes decisões que ele tomou, ou com os princípios religiosos que ele defendeu, mas todos dão testemunho da influência espiritual que o seu exemplo exercia sobre os outros Alguns lhe pediam orientação no caminho da santidade, outros se surpreendiam pela força silenciosa de seus hábitos humildes e reservados; outros, enfim, encon­travam reconforto e paz no seu modo simples de apresentar a verdade; mas todos ficavam impressionados por sua vida de oração constante e de estudo e por sua familiaridade, na fé, com as coisas do alto (Cl 3, 1).

Desde então até nossos dias, Newman permanece, para muitos, como um ponto de referência num mundo perturbado”.

Possa também o Brasil reconhecer a grandeza da figura de Newman e beneficiar-se dos méritos de sua vida santa!

A propósito pode-se citar a obra do Pe. Maurilio Teixeira Leite Penido: “O Cardeal Newman”. Ed. Vozes 1946 Biografia rica em citações.

Em francês, existe a obra de Louis Bouyer, ele mesmo Oratoriano e convertido do Protestantismo ao Catolicismo: “Newman. Se Vie, Sa Spiritualitê”. Ed. du Cerf, Paris 1952

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NOTAS:

[1] Para ilustrar essa qualidade, os biógrafos narram o seguinte episódio: Certa vez, a mãe de John Henry lhe disse: “Vês que não prevaleceste contra mim’: Replicou a criança: “Sim, mas também esforcei-me quanto pude para vencer”.

[2] Padres da Igreja são os grandes mestres que contribuíram para a reta for­mulação das verdades da fé nos tempos das controvérsias teológicas: sua época vai até S. Gregório Magno (+ 604) no Ocidente, e S. João Damasceno (+749) no Oriente.

[3] Eis a tradução das palavras finais, tiradas de Lc 2, 29s: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra. Pois meus olhos viram tua salvação”

[4] The Second Spring (Sermons preached on various occasions) p. 172s. Nas últimas linhas Newman alude à lei de emancipação política dos católicas, votada pelo Parlamento inglês em 1829. – Segundo julgam os historiadores, os católicos ingleses estavam reduzidos em 1814 a 160.000 apenas.