Deus: a escolha de Deus

 (Revista Pergunte e Responderemos, 375/1993)

Cardeal Jean-Marie Lustiger

 

Em síntese: Vão abaixo publicados trechos de um diálogo do Cardeal Jean-Marfe Lustiger, de Paris, com dois repórteres franceses a respeito da pessoa deste prelado e de seu modo de pensar. Lustiger é um judeu nascido em Paris no ano de 1926. Em 1940 abraçou a fé católica, depois de um amadurecimento paulatino, favorecido pela leitura da Bíblia e pelo teste­munho de vida de bons católicos; num clima de anti-semitismo, alimenta­do pelo nacional-socialismo alemão, esses fiéis cristãos não manifestavam hostilidade ao povo judeu. Lustiger, ao falar de sua conversão, põe em re­levo o papel significativo que os católicos desempenharam na sua desco­berta de Cristo, como também enfatiza não ter traído o judaísmo, pois há continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, Jesus Cristo é o Mes­sias aguardado pelo povo judeu. – Os trechos publicados a seguir fazem parte do livro que reproduz o diálogo completo entre Lustiger e seus en­trevistadores, com o nome “Le Choix de Dieu” (A Escolha de Deus).

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O Cardeal Jean-Marie Lustiger é o arcebispo de Paris. Judeu conver­tido, tem assumido posição de destaque não somente na Igreja, mas tam­bém no mundo civil francês e internacional.

Dada a singularidade do caso, dois intelectuais franceses, um judeu e outro católico, foram entrevistar o Cardeal-arcebispo a respeito de sua vi­da e de seu pensamento em matéria de fé, de história, de política, etc. Tratava-se de Jean-Louis Missika, redator-chefe da revista Médias Pouvoirs, e de Dominique Wolton, Diretor de Pesquisas no CBRS francês. O livro que daí resultou, traz o título Le Choix de Dieu (A Escolha de Deus) e conta 474 páginas de interessante leitura.[1]

A obra apresenta dados biográficos do Cardeal e aborda cinco temas: 1) Judaísmo, Cristianismo e Anti-semitismo; 2) Ciências Humanas e Fé; 3) Política e Sociedade; 4) Aspectos da Teologia e da Vida Pastoral; 5) A abertura da Igreja ao mundo.

Interessa-nos extrair desse livro alguns traços relativos à conversão de Aron Lustiger (como cristão, Jean-Marie) e ao seu modo de pensar sobre Judaísmo e Cristianismo. Com efeito; é realmente inédito o caso de um judeu, declaradamente judeu de sangue, que tenha sido nomeado bispo a Cardeal da Igreja Católica, ocupando uma de suas sedes episcopais mais importantes.

1. A CONVERSÃO

Aron Lustiger nasceu em Paris no ano de 1926, filho de judeus polo­neses que se haviam estabelecido na França, julgando encontrar na Europa Ocidental melhores condições de vida e mais segurança do que na Polônia. Os pais de Aron não eram profundamente religiosos, mas, como quer que seja, incutiram ao filho e à filha (irmã de Aron) o garbo de serem judeus, membros do povo messiânico. Toda a família Lustiger era honesta e amiga do estudo por efeito de suas tradições.

Aron assim concebeu grande estima ao seu povo judeu. Vivendo na França, não queria dissimular, como outros judeus, a sua identidade étnica.

Na escola, o menino sofreu uma ou outra represália da parte dos cole­gas, represália que ele sabia ser a continuação da perseguição tantas vezes sofrida pelos judeus desde os tempos do Faraó.

Os contatos que o adolescente teve com professores e com famílias católicas (especialmente em 1936 e 37) foram-lhe abrindo os olhos para a face bela do Catolicismo. Tais pessoas deram-lhe genuíno testemunho de amor cristão, sem ponta de anti-semitismo.

Clandestinamente o menino lia a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, em tradução francesa, e ia percebendo que o Messias procla­mado pelos cristãos era o Messias aguardado pelos judeus. Era curioso por saber mais e mais a respeito do Cristianismo, de modo que lançava fre­qüentes perguntas a quem lhe pudesse responder.

Em setembro de 1939, quando estourou a segunda guerra mundial, Aron e seus pais estavam em Orleães; o menino estudava num colégio des­ta cidade, experimentando dentro de si o fervilhamento religioso; este o preocupava muito mais do que o receio de ser vítima do anti-semitismo.

Na Semana Santa de 1940, estando na Catedral de Orleães, Aron con­cebeu o desejo de ser batizado.

Damos agora a palavra aos interlocutores do diálogo:

J.L.M.: “Como se deu esse desejo de Batismo?

J.M. Lustiger: “Eu compartilhava a existência cotidiana de cristãos convictos. Sabiam perfeitamente que nós éramos judeus e trataram-me com discrição exemplar”.

J.L.M.: “A mãe do senhor ia regularmente visitá-lo?”[2]

J.M. Lustiger: “Sim, semanalmente. Os contatos com meus colegas de colégio proporcionaram-me outra ocasião de intercâmbio com o Cristianis­mo… Recordo-me bem de que pedi à pessoa que nos hospedava, um Novo Testamento. Comecei por ler o Evangelho segundo São Mateus, que é o primeiro. Nessa mesma época eu lia Pascal. Lia-o assiduamente. Comecei a recopiar o Evangelho segundo São Mateus à mão. Sublinhei algumas passa­gens que me impressionavam. Eu tinha comigo uma pequena edição da Bí­blia de Crampon, em fascículos separados, que continham cada qual um Evangelho. Não cheguei a terminar; copiei apenas alguns capítulos. Isto deve ter acontecido por volta do Natal”.

J.L.M.: “O senhor falava disso com sua irmã?”

J.M. Lustiger. “Não creio. Alguns meses depois, entrei na catedral, que ficava no caminho para o Liceu. No meio de uma praça aberta… um enorme edifício de beleza austera e despojada, sempre em reparos. Entrei lá num dia que hoje identifico com a quinta-feira santa. Detive-me no tran­septo meridional, onde reluzia um conjunto harmonioso de flores e luzes. Fiquei lá por um certo tempo, impressionado. Eu não sabia por que estava lá, nem por que as coisas aconteciam daquele modo em mim. Eu ignorava o significado daquilo que via. Não sabia que festa era celebrada, nem o que as pessoas lá faziam em silêncio. Depois voltei para o meu quarto. Nada disse a quem quer que fosse.

No dia seguinte voltei à catedral. Eu queria rever aquele lugar. A igre­ja estava vazia. Espiritualmente também vazia. Experimentei a sensação desse vazio: eu não sabia que era a sexta-feira santa… e naquele momento pensei: quero ser batizado. Em conseqüência, dirigi-me à pessoa que me hospedava em sua casa. Era o mais simples. Eu sabia que era católica e que ia à Missa: eu a via, sabia quem ela era.

Disse-me: ‘É preciso pedir autorização aos seus pais’. Encaminhou-me para o Bispo de Orleães, Mons. Courcoux. Era um oratoriano muito culto; instruiu-me no Cristianismo, dando-me aulas particulares. Desde o início dos nossos encontros, ele me incitou a pedir a autorização dos meus pais. A cronologia me escapa, mas lembro-me muito bem do dia em que o co­muniquei aos meus pais – cena extremamente dolorosa, altamente insu­portável. Acabaram por aceitar. Mas isto é outra história”.

D.W.: “Recusaram o seu propósito?”

J.M. Lustiger: “Sim. Meu pai devia estar de licença em casa. Expli­quei-lhe que o meu propósito não me levava a abandonar a condição de judeu, mas, muito ao contrário, a confirmá-la, a dar-lhe a plenitude de sentido. Eu não tinha, em absoluto, a impressão de estar traindo, nem de me camuflar, nem de abandonar o que quer que fosse, mas, ao contrário, de atingir o pleno alcance e significado daquilo que recebera desde o nasci­mento. Isto lhes parecia totalmente incompreensível, louco e insuportável, a pior das coisas, a pior das desgraças que lhes pudesse acontecer.

Eu tinha a consciência muito aguda de que lhes causava uma dor in­tolerável ao extremo. Sentia-me, por isto, dilacerado; só o fizera por uma real necessidade interior. Outra solução teria consistido em guardar tudo dentro de mim mesmo, nada dizer e simplesmente aguardar.

Todavia, esta outra solução, eu não a quis considerar.

Mons. Courcoux era homem muito respeitoso do próximo. Não sei se ele tinha consciência do que isso representava para meus pais; não sei que conhecimento tinha ele dos judeus do nosso tipo. Era muito culto e inteligente. Os judeus que ele conhecia, eram os judeus liberais da intelligentsia francesa, dos quais Bergson era um representante.

Por fim, meus pais aceitaram. Para a minha irmã e para mim”.

J.L.M.: “Sua irmã queria também converter-se?”

J. M. Lustiger: “Ela me seguiu. Mas seguiu-me por convicção, embora nunca tivéssemos falado disso”.

J.L.M.: “Ambos tivestes a mesma evolução em Orleães nesse período?”

J.M. Lustiger: “Em todo caso, a mesma instrução. A que o Bispo nos dava… Seus cursos eram de um nível notável. Desde aquela época, fui ini­ciado no estudo das origens cristãs, no conhecimento dos textos mais anti­gos, com grande rigor histórico. Em poucas palavras: recebi uma iniciação cristã de qualidade intelectual e espiritual raramente oferecida a um ado­lescente. Confirmava a intuição muito viva que eu tinha, da continuidade do Cristianismo com o judaísmo. Mons. Courcoux falou-me de vários as­suntos; entre muitos outros, ele mencionava o Pe. Teilhard de Chardin, abordava também as relações entre a ciência e a fé. Isto equivale a dizer que eu não era mal tratado”.

D.W.: “O Sr. tinha sorte…”

J.M. Lustiger: “Lembro-me de só ter encontrado nessa áreagente que me inspirou respeito”.

D.W.: “Por que se lhe tornou evidente passar do judaísmo ao Cristia­nismo em vez de se voltar para o judaísmo?”

J.M. Lustiger: ” O Cristianismo é um fruto do judaísmo! Para ser mais claro, acreditei no Cristo, Messias de Israel. Cristalizou-se algo que eu tra­zia em mim desde anos, sem que eu o tivesse dito a alguém. Eu sabia que o judaísmo trazia em si a esperança do Messias. Ao escândalo do sofrimento respondia a esperança da redenção dos homens e do cumprimento das pro­messas que Deus fez ao seu povo. E eu fiquei ciente de que Jesus é o Mes­sias, o Cristo de Deus.”

D.W.: “Nesse momento, não há no senhor um sentimento de revolta?”

J.M. Lustiger: “Era a confirmação da descoberta do Messias de Israel e do Filho de Deus e, por conseguinte, da descoberta do próprio Deus. Eu ainda vivia a idade metafísica e a idade da dúvida: será que Deus existe? É esta a pergunta da razão crítica, pergunta lancinante ou subliminar do pensamento. Precisei de quinze anos, vinte anos para sair dessa questão, levando-se em conta a cultura que eu recebera e a minha evolução pes­soal”.

J.L.M. “Mas no momento mesmo da conversão ou dessa tomada de consciência existia essa dúvida?”

J.M. Lustiger: “A certeza absoluta de que Deus existe e a negação ra­dical que diz: ‘Deus não existe’, esses dois pensamentos encontravam-se em mim sucessivamente e, às vezes, simultaneamente. Mas no fundo eu sabia, mesmo quando não estava certo de crer, que Deus existe, pois eu era judeu”.

J.M. Lustiger: “Porque eu bem sabia que Deus nos tinha escolhido para mostrar que Ele existe!”

J.L.M.: “O sr. insistia muito, e compreendo-o, sobre o fato de que não havia proselitismo no ambiente que o acolheu”.

J.M. Lustiger: “Insisto nisso porque o proselitismo é a primeira idéia que vem à mente em semelhante situação. Foi também o que meus pais logo incriminaram”.

J.L.M.: “Digo a mesma coisa: será que o proselitismo mais requintado não é aquele que se dissimula?”

J.M. Lustiger: “Não sei. Tudo o que lhe posso dizer, é que eu era um adolescente insuportável, muito orgulhoso e de forte personalidade. Ai de quem me pisasse nos calos! Imagino que me possam manipular- toda gen­te é manipulável -, mas os interlocutores que eu tinha eram homens e mu­lheres de evidente honestidade. Além do quê, prestaram-me o serviço de ser críticos a meu respeito e de me recolocar no meu lugar”.

D.W.: “Seus pais não lhe propuseram uma solução alternativa: apro­fundar a fé judaica?”

J.M. Lustiger: “Sim, sem dúvida. Tivemos uma entrevista com famo­so personagem do judaísmo, uma discussão que durou duas horas em casa dele. Demonstrei-lhe que Jesus é o Messias. No momento em que saímos, ele disse aos meus pais: ‘Nada podem fazer; deixem-no proceder’ “.

D.W.: “O conflito familiar deve ter sido muito violento. O sr. encon­trou reconforto junto à sua mãe ou ao seu pai?”

J.M. Lustiger: “É muito complicado. Minha mãe morreu cedo de­mais. Foi deportada e faleceu em Auschwitz. Meu pai teve uma evolução que não pôde ocorrer com minha mãe: por conseguinte, não posso responder. Meu pai era sóbrio em palavras. Quando ele falava, a força. era enor­me, mas contida. Minha mãe, ao contrário, era expansiva, mais nervosa, mais expressiva.”

J.L.M.: “Seus pais não podiam também considerar que essa conver­são afinal não era coisa má no seu contexto histórico?”

J.M. Lustiger: “Fizeram esse cálculo. Viram uma proteção frente aos alemães. Creio que foi por isto que a aceitaram. Eu lhes disse: ‘Para nada servirá’”.

J.L.M.: “E ao sr. essas circunstâncias históricas não incomodavam? Quero dizer: não é difícil deixar o judaísmo quando os judeus são perse­guidos”.

J.M. Lustiger: “Não fiz raciocínios políticos. Para mim, não se trata­va, em absoluto, de renegar a minha identidade judaica. Muito ao contrá­rio. Eu percebia o Cristo Messias de Israel, e via muitos cristãos que ti­nham estima para com o judaísmo”.

J.L.M.: “O sr. nunca encontrou cristãos destituídos de estima aos judeus?”

J.M. Lustiger: “Aos olhos meus os anti-semitas não eram fiéis ao Cris­tianismo”.

J.L.M.: “Isto quer dizer que não há muitos cristãos na França!”

J.M. Lustiger: “Eram goyim, pagãos; não eram cristãos”.

J.L.M.: “O sr. vivia num plano espiritual, mas consciente da realidade histórica?”

J.M. Lustiger: “A realidade histórica era, para mim, extremamente forte, mas não tomou a forma de oportunismo político no meu caminho. Poucos anos depois, li os cadernos clandestinos de Témoignage Chrétien, em que encontrei claramente as minhas convicções. De Lubac, Fessard e Joumet, que na clandestinidade escreviam sobre a resistência ao paganis­mo nazista e sobre o judaísmo, disseram o que era preciso dizer”.

D.W.: “O sr. se lembra da data de sua primeira Comunhão?”

J.M. Lustiger: “Batismo e Eucaristia, aos 25 de agosto de 1940; e a Crisma aos 15 de setembro de 1940, sendo oficiante o Bispo de Orleães, na capela do Bispado de Orleães, em que celebrei a S. Missa como Bispo cerca de quarenta anos depois.”

J.L.M.: “O sr. mudou de prenome naquela ocasião?”

J.M. Lustiger: “Não. Guardei meu prenome de estado civil: Arão, que é o prenome do meu avô paterno. A tradição queria que, quando o avô morresse, um dos netos tomasse o seu nome; guardei-o como nome de Batismo, porque era meu e Arão, o Grão-Sacerdote, aparece com Moisés no calendário cristão.

E acrescentei João e Maria. João era o prenome do meu padrinho”.

Passemos a breve reflexão.

2. COMENTANDO…

Este belo depoimento do Cardeal Lustiger chama-nos a atenção para dois pontos:

1) Tornar-se cristão não significa, para um judeu, perder a sua identi­dade israelita. Com efeito; o Cristo Jesus é o Messias prometido aos ju­deus; a religião judaica é toda ela norteada pela expectativa do Messias, de modo que reconhecer o Cristo é reconhecer o que o judaísmo mais preza. Não há antítese entre judaísmo e Cristianismo; daí também não se com­preende o anti-semitismo, que é uma contradição da parte dos cristãos. Existe autêntica continuidade entre Israel e a Igreja ou entre o Antigo e o Novo Testamento. Por isto muito bem acentua, pouco adiante, o Cardeal Lustiger:

“(Estando na Igreja), eu não estava em terra estrangeira. Fazia parte dos filhos mais velhos. Estava apenas entrando no gozo da herança que me fora prometida” (p. 72).

A propósito de conversões do judaísmo ao Cristianismo veja-se ainda o artigo deste fascículo, pp. 345-348.

2) Muito contribuiu para a conversão de Aron, entre outros fatores, o comportamento correto e digna dos cristãos que acompanhavam o meni­no. A linguagem da vida ou da conduta é, por vezes, tão eficiente quanto a das palavras. Aron pôde conhecer o Cristianismo através de representantes translúcidos, que não hostilizavam o judaísmo, embora o clima da Europa de 1930-40 fosse de anti-semitismo. A lição vale para os católicos de nos­sos dias: a coerência de vida e a coragem de levar até o fim os princípios abraçados são de valor capital numa sociedade que pouco se interessa por livros de doutrina católica, mas muito observa o procedimento daqueles que se dizem católicos e que muitas vezes são o único Evangelho que os ir­mãos podem ler.

A personalidade do Cardeal Lustiger tem brilhado à frente do arcebis­pado de Paris, pois se trata não somente de um erudito, mas também de um homem de fé e de oração.

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NOTAS:

[1] Editions de Fallois, 22, rue la Boétie, Paris 1987.

[2] A mãe de Aron deixara Orleães para estabelecer-se em Paris, onde tinha uma pequena loja comercial.