Deus, ateismo: os ritos soviéticos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 292/1986)

Em síntese: A Rússia Soviética, embora professe oficialmente a ideo­logia atéia, instituiu ritos cívicos para acompanhar a vida dos seus cidadãos desde o nascer até o morrer,… ritos que lembram de perto as cerimônias re­ligiosas e suscitam, a seu modo o senso místico dos participantes. Tal fato é altamente significativo, pois evidencia quanto o senso religioso é profundo no ser humano, a ponto de se manifestar sob formas leigas quando é privado de suas expressões autenticamente inspiradas pela fé.

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Verifica-se na Rússia Soviética contemporânea que a vida dos cida­dãos, desde o nascer até o morrer, é acompanhada por ritos cívicos, que apresentam grande semelhança com os ritos religiosos e despertam, a seu modo, o senso místico dos participantes. Também as grandes festas do calendário nacional, a transição das estações do ano, a celebração dos heróis do país… são ocasião de cerimônias rituais significativas. – A se­guir, examinaremos a origem e a inspiração fundamental de tais ritos, a exporemos o desenrolar dos principais dentre eles.

1. Origem e inspiração básica

Já na época de Trotsky pensavam os mentores soviéticos na cele­bração ritual de algumas datas cívicas. Na década de 1950 e principal­mente nas regiões do Mar Báltico (N.O. da URSS), na Bielorússia Oci­dental, na Ucrânia e na Moldávia foram adotadas de maneira sistemática tais cerimônias a fim de contrapor-se às reminiscências religiosas dos ci­dadãos; em tais territórios a religião ainda era um símbolo da indepen­dência e da consciência nacional das respectivas populações.- A primeira de tais cerimônias foi a de “entrada da idade adulta”, concebida para apagar o ritual de Confirmação dos luteranos e inaugurada em 1957.[1] O êxito de tal praxe incitou as autoridades soviéticas a introduzir outras ce­rimônias rituais, desta vez relativas ao casamento, ao nascimento e aos funerais…

Aliás, não somente o desejo de combater a religião sugeriu aos go­vernantes a adoção de tais ritos; visavam também a difundir entre os jo­vens um certo idealismo e entusiasmo que dissipassem o ceticismo, a de­linqüência, o alcoolismo, o divórcio… existentes em camadas da popula­ção, especialmente nas mais jovens. Uma certa “educação” dos cidadãos seria assim obtida, com benefícios para a fidelidade ao socialismo e ao patriotismo soviético. O jornal Pravda de 18/10/1984 apontava como fina­lidade de tais ritos: “incutir nos jovens uma visão do mundo científico-­materialista do mundo”. “Do avanço desses novos ritos dependerá o de­saparecimento dos preconceitos religiosos. Esses ritos são um meio efi­caz de luta contra a influência da religião”, escrevia um especialista no assunto. Por sua vez, Constantino Chernenko em discurso de junho de 1983 afirmava: “A transformação revolucionária da sociedade não será possível sem que transformemos o próprio homem. E nosso Partido adota o princípio de que a formação do homem novo não é apenas um objetivo da mais alta importância, mas é também um meio obrigatório da construção comunista”.

Por isto os ritos são preparados por Comissões de peritos: artistas, sociólogos, historiadores, representantes do Partido e do Soviet local… Estes elaboram os textos para cada cerimônia antes de entregá-los aos agentes de propaganda, que desenvolvem intensas campanhas de difu­são dos mesmos.

Examinemos agora o desenrolar de algumas de tais cerimônias.

2. Principais ritos

Enumeraremos quatro cerimônias principais.

2.1. A Atribuição do Nome

Tal é o rito que corresponde ao Batismo cristão. A partir de 1960, foi muito fomentado para substituir a cerimônia do oktiabriny,[2] que caira em desuso. Pode ser celebrado dentro das primeiras seis semanas de existência da criança.

No dia aprazado, os pais, familiares e amigos do pequenino (não raro portadores de medalhas ganhas na guerra patriótica) dirigem-se ao Palácio do Malioutka (= Recém-nascido, em russo); são acompanhados pelos respondentes ou padrinhos. A recepcionista do Palácio, trajando vestido longo, acolhe mãe e filho num salão especialmente destinado a preparar a cerimônia. A seguir, convida solenemente todos a subirem para a sala dos ritos. O pai então toma a criança nos braços, precedido pela recepcionista, o cortejo caminha processionalmente ao som de mar­cha própria. A sala dos ritos é dominada por vitro, que representa mãe e criança; diante deste há algo que não é propriamente nem uma mesa simples, nem uma escrivaninha, mas se assemelha a um altar, portador de flores e do emblema da República. É então que entra em cena a fun­cionária que presidirá à cerimônia ritual.

Também revestida de traje longo, trazendo ao pescoço um grande colar do qual pende uma medalha com os símbolos da República (foice e martelo), a dirigente pronuncia breve discurso, no qual felicita com sim­patia a família portadora da criança. Diz então:

“Os filhos são tesouro inestimável na sociedade socialista. Tornam-se objeto de preocupação constante do nosso Partido leninista. Vamos hoje proceder ao registro de novo cidadão da URSS. Qual o nome que desejais dar à criança?”

Após a resposta dos genitores, toca-se o hino da União Soviética, em honra do novo cidadão.

A seguir, os genitores e os responsáveis se comprometem a educar a criança em conformidade com “as exigências da sociedade”. São cha­mados a assinar um por um, a declaração de nascimento e o registro civil da criança. Em troca, são-lhes entregues um certificado, que equivale a um salvo-conduto, e uma “carta para o futuro” comemorativa de tal dia. Em torno do pescoço da criança coloca-se uma fita (azul ou rosa, segun­do o sexo) com uma medalha. Após o quê, os participantes são convida­dos a passar para a sala contígua, onde um copo de mousseux espu­mante é oferecido a todos pelos genitores, os quais recebem congratula­ções calorosas de cada convidado. Retiram-se então para a casa da famí­lia em festa, que continua a celebração no lar.

O esquema da cerimônia da “Atribuição do Nome” é o mesmo em toda a União Soviética; os pormenores, porém, variam de região para re­gião. Eis, por exemplo, passagens do discurso proferido pelo(a) presi­dente da cerimônia em Kiev (Ucrânia):

“Caros pais… recordai-vos do vosso dever sagrado para com a socie­dade socialista: educar um filho que seja digno combatente até a vitória com­pleta do comunismo. Educai nele o amor ao trabalho e à sua grande pátria so­viética. Seja honesto, sincero, bom, cheio de respeito, de modo que a Mãe­-pátria se tome ufana, dele… E vós, veneráveis avós, trabalhastes sem trégua
durante a vossa vida; fizestes muito bem aos homens; educastes bons filhos, que vos deram netinhos… ”

Não se pode dizer que a apresentação ao Palácio do Recém-Nasci­do seja obrigatória; contudo sabe-se que é calorosamente estimulada.

2.1. O Compromisso dos Jovens

Com dezesseis anos de idade, o cidadão recebe, em rito próprio, a sua carteira de identidade (em russo dir-se-ia “o seu passaporte”, válido tão-somente para uso dentro das fronteiras do país). Esta cerimônia foi introduzida em 1976, quando os “passaportes” de todos os cidadãos so­viéticos foram sendo progressivamente trocados. O rito tem por finalida­de “evidenciar aos jovens e às jovens a importância do acesso à plena ci­dadania; a carteira de identidade lembra a cada cidadão soviético a ne­cessidade de respeitar escrupulosamente as leis e as normas da vida soviética” (Nachi Prazdniki, Nossas Festas, Moscou 1977, p. 137).

O elemento central e altamente emocionante dessa cerimônia, cu­jos pormenores são oscilantes, é o juramento prestado por um jovem em nome de seus colegas:

“Eu, cidadão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, neste dia e nesta hora solene da minha vida, comprometo-me perante meus pais, meus amigos, meus colegas, meus mestres, diante do meu grande país e de todo o povo soviético, a ser sempre fiel à minha Pátria bem-amada, a trazer garbosa e dignamente o titulo de cidadão soviético, a cumprir honestamente e até o fim os meus deveres de cidadão, a trabalhar e a estudar com afinco, colocando todas as minhas forças e todas as minhas capacidades a serviço do meu Po­vo e da minha grande Pátria”.

E todos os jovens de dezesseis anos exclamam: “Nós o juramos! Nós o juramos!”
Outros ritos marcam a passagem para a maioridade, a entrada na classe operária, o recrutamento para o Exército soviético. Todavia as formas rituais dessas celebrações ainda não foram uniformizadas.

2.3. O casamento

Existe nas cidades soviéticas o Palácio dos Casamentos, que fre­qüentemente é ornamentado com imagens simbólicas: ferraduras de ca­valo estilizadas, “sinais de boa sorte e felicidade”, quadros elaborados sobre madeira, à semelhança dos ícones, que representam o amor, a fa­mília e a felicidade.

Os nubentes, ao penetrar nesse Palácio, são acolhidos pela recep­cionista, que os leva, em companhia das testemunhas, para salões separa­dos, onde confirmam sua opção matrimonial. A noiva está vestida de branco, e traz na cabeça um véu que lembra um coração. O noivo se acha vestido com terno escuro e gravata. Ao sairem cada qual do respectivo salão, deparam-se com outra recepcionista, que desce pela escada de honra, cujos degraus são dourados (“a escada dourada da felicidade”). Em tom de voz levemente enfático, ela convida os nubentes a subir para a sala dos ritos. Então sobem todos, enquanto se toca música apropriada. A sala dos ritos é simples. Sobre a parede de fundo, vê-se uma tapeçaria com personagens simbólicas, tendo em relevo a Fé, a Esperança e o Amor (em russo, “Vera, Nadiejda e Lioubov”, três santos muito venera­dos pelos russos ortodoxos). Diante dessa tapeçaria, vê-se uma espécie de altar de pedra, semelhante ao da Casa do Recém-Nascido.

A pessoa que preside à cerimônia, de pé atrás do “altar”, evoca to­da a importância do rito e pede o consentimento matrimonial dos nu­bentes. Tendo-o obtido, ela os declara unidos pelos laços do casamento. Assinam então, juntamente com as testemunhas, o termo de matrimônio. A seguir, são levados a um pequeno tapete colocado à frente e à esquer­da do “altar”; ali uma funcionária lhes oferece solenemente a taça co­mum, da qual bebem alguns goles de suco. Depois, com uma fita ata o antebraço direito do marido ao da esposa, para “simbolizar a união in­dissolúvel”. A família e os amigos são convidados a felicitar os jovens es­posos. A seguir, passam para a sala contígua ornamentada simbolica­mente com uma nave, que serve de lâmpada e que representa a família a enfrentar as águas tumultuadas da vida. Uma cornucópia, símbolo de fartura, é colocada sobre a mesa. Bebem à saúde do novo casal.

O ritual de casamento varia segundo as regiões da URSS. Em Rostov-sobre-o-Don, no Sul do país, é influenciado pelas cerimônias da Igreja Ortodoxa. Essa usa, sim, o tapete sobre o qual se coloca o casal, a taça (que lembra a Eucaristia) e o laço que ata os braços dos nubentes entre si. Na Ucrânia, porém, a influência é mais pagã. No hall de entrada do Palácio arde o “Fogo Eterno”, “símbolo da sucessão das tradições re­volucionárias de luta e de combate do povo soviético”. O presidente da cerimônia pronuncia a fórmula seguinte: “Aproximai-vos do Fogo eter­no. O Fogo simboliza nossa recordação de todos aqueles que sacrifica­ram a vida pela liberdade e a independência da nossa Pátria soviética, pelos ideais comunistas, por um céu puro acima de nós, por nossa felici­dade e pela de nossos filhos. Que ele arda eternamente em vossos cora­ções!” O nubente acende então a tocha que ele há de levar à frente da procissão até a sala dos ritos…

Os discursos também podem diferir. Eis outro espécimen:

“Sob o céu pacifico de nossa Pátria bem-amada, o Povo Soviético, guiado pelo Partido de Lenin, segue a via luminosa que leva ao comunismo. Sois filha e filho de vosso povo heróico, esperança e futuro desse povo… Ago­ra sois também esposa e esposo. Fundais uma nova família, perpetuais vossa linhagem para o bem do nosso Estado socialista, a imortalidade do Povo so­viético e para a vossa felicidade pessoal”.

Em Moscou os jovens esposos vão depositar flores no túmulo do soldado desconhecido, diante do qual arde o Fogo eterno. São levados ao muro do Kremlin, onde se encontra o Memorial dos mortos da guerra, em grandes veículos alugados para tal fim, e portadores de dois grandes anéis de ouro entrelaçados. Em Kazakhstan, na Ásia Central, foram tam­bém integrados no rito soviético elementos tradicionais.

2.4. Os funerais

Há também cerimônias soviéticas fúnebres. Constam de duas par­tes: uma panikhide (palavra russa que designa o Ofício dos Mortos na I­greja Ortodoxa) civil, ou seja, discursos em memória do defunto, e uma procissão que acompanha o caixão ao som de música fúnebre. As autori­dades têm procurado tornar cada vez mais significativos esses ritos, que regulamentam minuciosamente a música, o caixão e as covas.

Nem sempre os ritos soviéticos conseguem erradicar dos cidadãos a reminiscência das cerimônias religiosas. Não raro os interessados parti­cipam daqueles e destas, principalmente quando se trata do casamento. É evidente que o ritual civil é muito mais pobre de significado do que o religioso.

3. Conclusão

O fato de que o Estado Soviético ateu promove um cerimonial li­túrgico para as grandes datas civis da sua população, bem mostra que o senso religioso continua vivo no povo russo. Este manifesta a necessida­de de símbolos místicos; sob capa não religiosa continua a professar a crença em valores que só Deus pode oferecer adequadamente: a plena felicidade, a eternidade, o serviço a uma Causa Maior que mereça plena dedicação… É impossível, porém, que um fator não religioso assuma sa­tisfatoriamente o lugar da própria Religião na vida de um povo.

O presente artigo utilizou as páginas escritas por Michel Sollogoub, Professor de Economia em Paris e Mans, Vice-Presidente da Ação Cristã dos Estudantes Russos, páginas publicadas com o título: Du Berceau au Tombeau. Des rites pour tous les Ages en Union Soviétique, em L’Ac­tualité Religieuse dans le Monde, n° 21, 15/03/85, pp. 6-9.

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NOTAS:
[1] Na Estônia, por exemplo, contavam-se 3.500 Confirmações em 1950 e mais de 10.000 em 1957.
[2] Oktiabriny é a cerimônia introduzida nos primeiros anos da revolução rus­sa. O nome era uma réplica a krestiny, Batismo em russo; em vez de krest, (cruz), foi utilizado o radical oktiabr, outubro, com o sufixo iny.