Deus, existência: Deus nas entranhas

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 185/1975)

(God in the Gut)

Em síntese: Um inquérito recém-realizado pela revista norte-ameri­cana “Psychology To-Day” revelou que, para a maioria das pessoas inter­rogadas, Deus não morreu, mas apenas mudou de endereço: não é mais no alto, nos céus e à distância que os homens procuram a Deus, mas, sim, no íntimo de si mesmos.

Este resultado é muito positivo, pois na verdade significa passagem de concepções infantis para noções que o Evangelho e os místicos cris­tãos muito encarecem. Todavia parece ameaçado por dois perigos, que os dados do inquérito também apontam:

o irracionalismo (preponde­rância da fantasia sobre a sã razão);

o individualismo (muitos daqueles que professam a fé em Deus, fazem “sua religião própria”).

– O irra­cionalismo aparece, em parte, através da onda de crendices (o horóscopo, por exemplo, que tem grande voga mesmo nos EE. UU.). A multiplicação de grupos religiosos novos (“Meninos de Deus”, “Campus Crusade for Christ“, Satanismo…), inspirados por emoção mais do que por idéias, é algo de sintomático que merece especial atenção dos cristãos.

Os resultados do inquérito deixam o observador convicto de que Deus realmente “não morreu”, nem poderia morrer sem que o homem também morra (aliás, o estruturalismo sem Deus já chegou a proclamar a morte do homem). Deus está vivo na fé dos homens. Toca, porém, aos cristãos mostrar aos seus semelhantes que essa fé é inseparável tanto do sadio uso da razão como da adesão àquela comunidade de fé e sal­vação instituída pelo próprio Deus que é a S. Igreja Católica.

***

Comentário: Em nosso editorial de PR 182/1975, pp. 49s, demos noticia sumária de um inquérito realizado pela revista norte-americana «Psychology To-Day» (abreviadamente, PT) a respeito de fé e valores religiosos entre os leitores do perió­dico. Lançado em dezembro de 1973, esse inquérito obteve as respostas de 40.000 pessoas, respostas das quais 2.000 foram escolhidas para ser objeto de estudo mais preciso; os resul­tados do trabalho foram finalmente publicados na edição de «Psychology To-Day» de novembro de 1974, pp. 131-136, sob o título «The Shifting Focus of Faith. A Survey Report: GOD IN THE GUT. – O foco da fé em mudança. O resultado de um inquérito: DEUS NAS ENTRANHAS»[1]; a responsabili­dade deste artigo final do inquérito é de Robert Wuthnow e Charles Y. Glock.

Visto que os dados colhidos pelo questionário são ricos em significação e não puderam ser suficientemente apresenta­dos no referido editorial, parece oportuno que lhes dediquemos ainda as páginas seguintes, nas quais serão fornecidos outros e mais minuciosos resultados do inquérito, acompanhados de breves comentários.

1. Objeto e âmbito do inquérito

1. O questionário enviado aos leitores de «Psychology To-Day» compreendia questões religiosas e outras afins a estas, desde que ficassem dentro do âmbito da fé ou da mística (em sentido largo); versava, pois, sobre a existência de Deus, a significação última da vida, o caminho da felicidade, o por­quê do sofrimento, o valor da oração, a crença no Além…; pedia também opiniões sobre astrologia, reencarnação, religiões orientais, percepção extra-sensorial, seitas religiosas modernas, correlação entre crenças religiosas, moral e política.

«O inquérito tocou um nervo exposto» (p. 131). Provocou as mais diversas reações da parte das pessoas interpeladas:

“Alguns responderam que se sentiam tristes em vista daqueles para quem Deus não era a resposta de todas as questões apresentadas. Outros nos agradecem por lhes termos oferecido a ocasião de exprimir os seus genuínos sentimentos religiosos. Escreveu, por exemplo, um jovem: ‘Penso a respeito de tais assuntos, mas geralmente não falo deles nem chego a conclusões. Agradeço-lhes por ter-me feito pensar’” (p. 132).

2. Quanto ao tipo de pessoas que responderam ao inqué­rito, eis o que os números indicam:

Idade

Menos de 18 anos

4%

18 – 24 anos

40%

25 – 34 anos

32%

35 – 39 anos

7%

40 – 49 anos

10%

Mais de 50 anos

6%

Sexo

Feminino 57%
Masculino 43%

Instrução

«High School» (escola secundária) 17%
«College» (Universidade) 83%

Estado civil

Solteiros 52%
Casados 35%
Viúvos/divorciados/separado 10%

Como se vê, 62% dos que responderam, pertencem à faixa dos 18 aos 34 anos de idade; mais de metade são solteiros; quase todos usufruem de grau de instrução superior, sendo um pouco maior a porcentagem dos correspondentes femininos do que a dos masculinos.

2. As diversas respostas

Classificaremos as respostas ao inquérito de acordo com os respectivos objetos da indagação.

2.1. Crença em Deus

Eis precisamente o quadro apresentado por «Psychology To-Day», p. 132:

Qual a sua atitude frente a Deus?

Fem.

Masc.

Não creio em Deus

7%

12%

Não podemos saber se Deus existe

11%

10%

Inclino-me a não crer

4 %

35

Inclino-me a crer

12%

11%

Creio definidamente em Deus

40%

36%

Creio em «algo mais» ou «além»

26%

28%

Vê-se que o total dos que respondem, antes, pela negativa (três primeiras categorias de respostas) é de 22% para as mulheres e de 25% para os homens – o que dá uma média de 23,5 %. Quanto ao total dos que crêem ou se inclinam a crer, chega a 78% para as mulheres e 75% para os homens – o que dá uma média de 76%!

2.2. Filiação a denominação religiosa

Os correspondentes de PT assim expuseram as suas con­vicções religiosas:

27% são protestantes
18% católicos
4% judeus
1% ortodoxos orientais ou mórmons
5% adeptos da mística oriental
8% seguem sua «religião própria»

Estes grupos religiosos perfazem um total de 63%. Aliás, dê passagem, Wuthnow e Glock observam que, segundo recente inquérito Gallup, 3/4 partes dos jovens americanos dos 18 aos 24 anos (idade crítica) dizem pertencer a uma das três grandes denominações religiosas que são o protestantismo, o catolicismo e o judaísmo.

-Os demais 37% dos correspondentes de «Psychology To­-Day» declararam ter cancelado qualquer orientação religiosa de sua vida: 10% não têm crença religiosa alguma; 13% se professam ateus ou agnósticos, enquanto 14% se chamam «humanistas».

Dentre os que professam um Credo religioso definido, so­mente pequena parte freqüenta o culto na igreja ou na sina­goga respectiva, embora provenham de famílias praticantes e tenham outrora participado do culto comunitário. Assim nove dentre dez afirmaram que as respectivas genitoras eram tra­dicionalmente religiosas; oito dentre dez afirmaram o mesmo com relação aos genitores. Apenas 23% ainda freqüentam a igreja ou a sinagoga. Acontece que não poucos desses crentes sem prática religiosa oficial fizeram questão de realçar o se­guinte: abandonar a igreja ou não a freqüentar não significa rejeitar as crenças religiosas como tais.

Voltaremos ao assunto em nosso comentário final.

2.3 Valor da oração

O inquérito incluía algumas perguntas sobre a oração, às quais foram dadas as seguintes respostas:

Como vê a oração?

Fem.

Masc.

Não creio na oração; nunca adianta

8%

9%

Não creio na oração; mas não faz mal; orar em ocasiões de emergência

4%

5%

Orar é apenas falar consigo mesmo; mas às vezes adianta

33%

36%

Orar adianta; mas é preciso oferecer apenas orações de agradecimento e louvor

3%

5%

Orar adianta, mas Deus nem sempre responde

12%

12%

Deus sempre responde à oração, mas a sua resposta pode não coincidir com o nosso desejo

41%

32%

Como se vê, são notoriamente poucos (8 e 5%) os que em absoluto não valorizam a oração. Os que a estimam no pleno sentido teológico, constituem a maioria relativa: 41% (f.) e 32% (m .). Na verdade, não há oração perdida, desde que humilde e confiante. Todavia Deus sabe melhor do que o orante como atender às necessidades de seus filhos; se Ele não responde «conforme o figurino», responde em termos ainda mais oportunos.

2.4. No tocante à outra vida

Eis outro ponto estritamente ligado com a crença em Deus e, por isto, objeto de inquérito.

Como encara o Além?

Fem.

Masc.

Não creio que haja vida póstuma

15%

18%

Estou incerto quanto à existência da mesma

17%

16%

Creio que deve haver algo além da morte, mas não tenho idéia do que seja

31%

28%

Existe vida após a morte, não, porém, castigo

3%

5%

Existe vida após a morte, com recom­pensa para uns e punição para outros

16%

14%

A reencarnação corresponde ao que penso

13%

10%

Nada do acima mencionado

6%

9%

A resposta cristã à pergunta identifica-se com a quinta da tabela acima. Apenas seria para desejar-lhe outra formu­lação, mais precisa: «Existe vida póstuma, na qual cada um colherá o que tiver semeado na vida presente: amor bem esca­lonado ou desamor, ódio». Os correspondentes que se expri­miram neste sentido plenamente cristão, não são muitos: 16% (f.) e 14% (m .). Mas também há boa porcentagem dos que crêem em algo de póstumo, embora não o saibam definir (o que é muito compreensível): 31 % (f .) e 28 % (m .).

Do ponto de vista teológico, não se compreende a disso­ciação de fé em Deus e crença na vida do Além. Deus teria dotado o ser humano de tantas e tão belas aspirações (à vida, à verdade, ao amor, à justiça… ) para deixar esses anseios frustrados por todo o sempre? Seria sábio, da parte do Cria­dor, fazer um tal absurdo ou um tal paradoxo?

2.5. O encontro do Oriente e do Ocidente

É conhecido o avanço das crenças orientais nas regiões ocidentais da Europa e da América.

Os promotores do inquérito de PT escolheram dez cor­rentes religiosas orientais e ocidentais que nos últimos tempos têm exercido algum fascínio sobre a sociedade moderna: qua­tro tipicamente orientais (a Meditação Transcendental, o «Hare Krishna», o Zen-budismo e a Yoga); duas, de origem ocidental não cristã (o Satanismo e a Cienciologia); três, de raízes cris­tãs (os «Meninos de Deus», os «Judeus para Jesus» e a Cru­zada de «Campus para Cristo»), além da seita mística judaica chamada Hassidismo.

No inquérito, um dos itens versava sobre a atitude das pessoas interrogadas frente a essas diversas denominações. Eis o resultado:

Respostas às várias seitas:

Tomei parte

Interessado

Neutro

Contrário

Nunca ouvi

Meditação Transe.

8%

45%

32%

8%

7%

Hare Krishna

2%

18%

44%

21%

15%

Zen

4%

36%

40%

8%

12%

Yoga

10%

346%

34%

7%

3%

Satanismo

1%

2%

31%

59%

7%

Cienciologia

2%

12%

33%

20%

33%

Meninos de Deus

1%

9%

38%

21%

31%

Judeus para Jesus

1%

12%

42%

14%

31%

Cruzada para Cristo

1%

6%

26%

7%

60%

Hassidismo

1%

6%

26%

7%

60%

Como se percebe, a maior porcentagem de «Nunca ouvi» se verificou em relação ao Hassidismo (ou pietismo) judeu. Quanto às demais seitas, o que predomina é a neutralidade. O número de interessados merece atenção – o que se com­preende, vista a penetração das seitas orientais e das novas «místicas» na sociedade contemporânea. Os praticantes, po­rém, são realmente poucos, salientando-se entre todos os adep­tos da Yoga, da Meditação Transcendental e do Zen-budismo, ou seja, das crenças e práticas oriundas da Índia. O Satanismo provocou o maior número de abertas repulsas, ou seja, 59% – o que se deve talvez entender parcialmente em função dos filmes «O Exorcista» e «Rosemary’s Baby».

Quanto à astrologia, também foi objeto de inquérito. 8% apenas dos correspondentes professaram crer firmemente na tese de que «as estrelas, os planetas de nosso dia de nascimento têm influência sobre o nosso destino na vida». 22% mostra­ram-se firmemente contrários a essa crença. Quanto à maio­ria, ou seja, 70% revelaram atitudes de dúvida. Entre as mu­lheres, a aceitação da astrologia é mais esparsa do que entre os homens (31% versus 15%); quanto àqueles que duvidam, também são mais numerosas as mulheres (76% versus 63%).

O horóscopo propriamente dito, com seus sinais zodiacais, encontra de modo geral simpatia entre os correspondentes. Mais de 98% destes sabiam dizer qual o seu signo zodiacal (o que, na verdade, se pode explicar também por mera curiosi­dade, sem que haja a crença respectiva por parte das pessoas interrogadas). 44% destas declararam conhecer certas noções de astrologia, mas 70% responderam não estar absolutamente interessadas em seu horóscopo ou apenas levemente interes­sadas.

2.6. Fenômenos parapsicológicos

Os fenômenos parapsicológicos nada têm que ver pro­priamente com fé e religião. Todavia também foram incluídos no inquérito de PT, porque na realidade concreta acontece que esses fenômenos fazem lenta e naturalmente as pessoas pen­sar na espiritualidade da alma e despertam para crenças reli­giosas ou abrem para a realidade invisível, transcendental. De modo especial, os autores do inquérito indagaram a respeito de ESP («extra-sensorial perception») ou de percepção extra­-sensorial.

Eis os resultados das indagações:

1) Aproximadamente metade dos correspondentes (48%) afirmou estar certa de que a ESP existe;

2) 44% (o que quer dizer: quase a outra metade) julga­ram que provavelmente ela existe;

Apenas 1% recusa a realidade ou o valor da ESP;

4) 7% pensam que provavelmente ela não existe.

Grande é o número daqueles que contam algum caso pes­soal de percepção extra-sensorial: assim

63% dizem ter experimentado a telepatia (leitura do pen­samento alheio);

37% a clarividência (percepção de acontecimentos longínquos);

52% a precognição (consciência de acontecimentos futuros);

13% a psicocinese (moção de objetos à distância, sem contato físico visível).

É difícil julgar-se o valor objetivo dessas «experiências»; muitas podem ser autênticos casos de percepção extra-senso­rial, como também podem ser projeções de imaginação pessoal do respectivo sujeito. O fato é que o interesse por tal tipo de assunto tem significado: como dito, exprime a busca de algo que transcenda a matéria e o domínio dos sentidos. É certo que muitas pessoas, na procura do transcendental, estão sujeitas a enganar-se, configurando o transcendental, o «espiritual» em termos subjetivos e fantasistas. Doutro lado, também se deve reconhecer que o cultivo científico e bem orientado da para­psicologia leva a distinguir fenômenos humanos oriundos do psiquismo subjetivo, dos autênticos fenômenos religiosos (expe­riência genuinamente mística, ação de Deus sobre a alma hu­mana, milagres em sentido teológico, etc.).

2.7. Outras questões

O inquérito versou ainda sobre outras atitudes que por vezes têm estado ligadas com a religião, ao menos no compor­tamento prático da sociedade contemporânea.

Assim, no tocante ao uso de drogas, os correspondentes, em grande maioria, declararam ter feito ampla experiência das mesmas. Em menor número, são aqueles que foram mar­cados por efeitos duradouros dessas drogas em sua vida.

Com relação à influência das posições religiosas na vida política, o inquérito apurou que as pessoas adeptas de atitudes religiosas mais tradicionais (o que por si não tem sentido pejo­rativo) seguem caminhos conservadores nos planos da moral e da política (o que também não é por si pejorativo). Ao con­trário, os cidadãos que aderem às novas formas religiosas, são propensos a envolver-se em questões políticas e adotar padrões morais próprios e novos estilos de vida.

Por certo, este resultado não quer dizer que só possa haver participação política e novos estilos de vida dentro de novas seitas ou correntes religiosas (orientais, revolucioná­rias… ), pois não há dúvida de que, guardando fidelidade às linhas constantes do Evangelho e da Igreja Católica, o cristão pode perfeitamente participar da vida política de seu país e procurar renovar os aspectos contingentes e acidentais do seu comportamento.

2.8. Conclusão

É importante realçar os tópicos em que Wuthnow e Glock resumem os resultados de suas pesquisas ou as suas conclusões.

“Deus está vivo. Apenas mudou de endereço. A procura religiosa está-se desviando de um Supremo Ser fora no espaço para os mistérios íntimos e pessoais… Muda-se o foco da fé: Deus nas entranhas” (p. 131).

“Os homens ainda procuram respostas para as grandes questões religiosas que o gênero humano se propôs durante séculos, e ainda an­seiam por acreditar que Alguém está dirigindo a história,… que existe algo além do nosso reino pessoal e coletivo. ‘Deve haver algo mais, escreveu um leitor; teria horror a pensar que nós, homens, possamos ser os supremos seres’ ” (p. 136).

Estas observações, assaz favoráveis aos valores da fé, sugerem algumas reflexões a ser propostas sob o título abaixo.

3. Comentário final

1. O resultado do inquérito deve ter surpreendido grande número de estudiosos. A aparente indiferença religiosa de grandes massas humanas hoje em dia levaria a crer que «Deus morreu», como tanto se tem dito. Na verdade, o senso de Deus é tão genuíno e veraz que ele não pode morrer sem que o pró­prio homem morra ou se autodestrua; é o que confirmam cer­tas correntes de filosofia estruturalista, as quais, após a pro­clamação da morte de Deus, têm apregoado a morte do homem nos nossos dias.

Eis, porém, que a genuína voz do homem se faz ouvir através do inquérito de «Psychology To-Day». O que morreu (ao menos na mente de muitas pessoas mais modernas), é a imagem do Deus «papai bonachão», pairando no alto sobre as nuvens; esta é infantil demais para resistir ao espírito crítico dos jovens e dos adultos de nossos tempos. Mas, em compen­sação, o homem de hoje vai tomando consciência de que Deus habita no coração daqueles que Lhe são fiéis ou ao menos O procuram com toda a sinceridade. O Evangelho o diz clara­mente aos cristãos, referindo a promessa de Cristo: «Se al­guém me ama, guardará a minha palavra; meu Pai o amará e viremos a ele, e nele faremos morada» (Jo 14,23). A espi­ritualidade cristã sempre apregoou a vida interior e a oração silenciosa para que o homem possa mais e mais descobrir essa presença de Deus em seu íntimo. – Por conseguinte, a tomada de consciência desta verdade – ainda que em termos pálidos ou rudimentares – significa um passo positivo na história do pensamento contemporâneo.

2. Apenas é para desejar que essa conquista não seja prejudicada por duas tendências negativas que a ameaçam e que o inquérito de PT concorreu para pôr em foco:

1) o irra­cionalismo emotivo e fantasista, 2) o subjetivismo individua­lista.

Irracionalismo e subjetivismo… Reconhecer que Deus existe já é um grande valor… Para poder aproximar-se cada vez mais desse Deus e desvendar os seus mistérios, o ser hu­mano não pode deixar de servir-se de dois subsídios que o próprio Deus lhe deu: a sã razão e a comunidade dos irmãos. Sim; a sã razão é para o homem a primeira antena mediante a qual ele capta a verdade e chega à plenitude da luz e da verdade, que é Deus mesmo. A razão tem seus critérios obje­tivos e universais, já que é a mesma em todos os homens (todos costumam aceitar que dois mais dois são quatro, … que o todo é maior do que qualquer das suas partes …) .

Quanto aos irmãos, sabemos que o homem é naturalmente um vivente social, o qual só se realiza (em qualquer das suas dimensões) em comunhão com os seus semelhantes; também a caminhada para Deus se faz em comunhão – verdade esta que o Cristianismo corrobora com ênfase especial, afirmando que o próprio Deus instituiu a Igreja como comunidade de sal­vação e sacramento de unidade. A comunidade também tem critérios objetivos e universais, que impedem os seus membros de se perder no individualismo cego.

Ora os depoimentos obtidos pelo inquérito de PT dão mar­gem a que se atribua a grande número de correspondentes uma fé subjetivista e irracional: a maioria, embora creia em Deus, se distanciou da respectiva Igreja; outros dizem ter «sua religião própria» … Através destas atitudes, percebe-se que o homem moderno não se quer afastar de Deus, mas arrisca-se a conceber o Senhor de maneira ilusória, vaga, como esteio psicológico ou como objeto de sentimentos indefinidos… Na verdade, porém, a religião não é um partido político, ao qual as pessoas possam aderir ou não aderir, sem que isto diminua o seu amor à pátria; a religião e a prática comunitária da religião são preservativos da verdadeira fé ou, mais, são o âmbito no qual a fé cresce. Numa visão cristã, dir-se-ia mesmo:… são o caminho normal e obrigatório, instituído pelo próprio Deus, para que o homem chegue à consumação das suas aspirações mais genuínas. Para o cristão, não pode haver fé em Deus, sem adesão a Cristo e à Igreja.

A crescente estima das correntes religiosas orientais é, do seu modo, significativa de certo irracionalismo. Tais cor­rentes são acentuadamente místicas (o que é positivo), mas cedem a menosprezo da razão. O mesmo se diga das correntes de «Satanismo», «Meninos de Deus», «Cruzada para Cristo», «Cienciologia» e outras afins. São marcadas por tendências a exaltações místicas que não resistem ao crivo do bom senso e da razão ; constituem reavivamentos, reações ou réplicas cuja duração e efêmera.

Doutro lado, o interesse assaz amplo por astrologia e horóscopo, entre os correspondentes de PT, é outro indício de irracionalismo. A astrologia (dita «arte de diagnosticar o temperamento e a vida dos homens») e a astronomia (ciência) não se conciliam mutuamente em absoluto. A astrologia e a arte do horóscopo supõem concepções cosmológicas que a ciên­cia moderna rejeita peremptoriamente (anel circundando a terra, no qual se encontrariam as casas do zodíaco, número limitado de planetas, entre os quais o sol e a lua …) .

O abandono das comunidades eclesiais por parte dos cren­tes corresponde bem às notas de subjetivismo e existencia­lismo do pensamento moderno. Aliás, parece mais fácil e cô­modo fazer «sua religião» do que seguir a religião oficial; inconscientemente a pessoa pode enganar-se a si mesma nessa confecção religiosa (escolhendo os elementos que lhe conve­nham e rejeitando os que desagradem). – O abandono das comunidades deve-se também, em parte, ao fato de que nem sempre todos os membros de uma comunidade estão à altura do ideal que professam: sombras, incoerências, contra-testemu­nhos afastam as pessoas que não tenham a formação religiosa necessária para envolver esses fatos numa visão de fé superior.

O cristão aceita serenamente a realidade que os dados estatísticos lhe apontam. Ele sabe que o próprio Deus é o Senhor da história; no Apocalipse, o Cordeiro imolado e vito­rioso traz em suas mãos o livro dos desígnios de Deus, de modo que todo e qualquer acontecimento está envolvido pela sabe­doria divina. Da reflexão sobre os fatos até aqui recenseados o discípulo de Cristo deduz duas imperiosas lições:.

1ª) Mostrar aos seus semelhantes as conseqüências da fé em Deus, que não morreu no mundo de hoje. Sim; fé em Deus se distingue de crendices (que são irracionais), pede as luzes e o instrumental da razão para aprofundar as suas con­cepções religiosas, e adere à comunhão dos irmãos, sem os quais o indivíduo corre o risco de desfigurar-se.

2ª) Compete outrossim aos discípulos de Cristo esfor­çar-se denodadamente para que a face humana da Igreja bri­lhe com novo fulgor, fazendo transparecer, para a humanidade contemporânea, a graça de Cristo e o amor ao Pai, insepara­velmente unidos à Igreja.

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NOTA:

[1] “Deus nas entranhas”, isto é, procurado no íntimo ou nas profun­didades do homem, em vez de apontado “lá no alto, nas nuvens” como o Deus distante ou o Deus da imaginação infantil. – Este deslocamento de enfoque da fé pode ter sentido positivo e valioso, se é entendido se­gundo os místicos, que sempre procuram descobrir a Deus pela oração, o recolhimento e a vida interior; o homem primitivo e a criança, ao con­trário, tendem a identificar Deus com objetos exteriores, vistosos ou mesmo espalhafatosos (ídolos, sol, lua, fogo… ).