(Revista Pergunte e Responderemos, PR 339/1990)
Em síntese: Os silêncios de Deus desconcertam muitas pessoas: vêem o mal campear no mundo, sem que Deus pareça tomar parte na angústia dos que são vítimas da violência e da injustiça. O presente artigo transcreve testemunhos dos Profetas bíblicos e de autores modernos relativos a tal problema. À guisa de esclarecimento, acrescentam-se algumas reflexões teológicas sobre o assunto: Deus não é um ser mudo; Ele se revelou e revelará; se Ele, por vezes, parece calar-se, Ele o faz sábia e providencialmente, como são sábios e harmoniosos os silêncios (as pausas) existentes numa sinfonia; esta precisa não somente de notas melodiosas, mas também de seus intervalos devidamente compassados. Os “silêncios de Deus” devem excitar o cristão a criar novas antenas ou ouvidos interiores para perceber mais profundamente o discurso de Deus que se desdobra no decorrer da vida do indivíduo ou do gênero humano. Associando os fatos da história entre si, o cristão neles descobre como que fragmentos de letras ou de palavras…, fragmentos que, sabiamente combinados entre si, revelam bela e santa mensagem de Deus; o discurso do Senhor se manifesta ao homem na medida em que este, longe de ceder ao desânimo, vai caminhando na fé e realizando a vontade de Deus diariamente; é então que fragmento se junta a fragmento, letra a letra, palavra a palavra e a mensagem final ressoa sábia e restauradora. “O justo vive da fé”, diz São Paulo (Rm 1, 17); “Quem perseverar até o fim, será salvo”, acrescenta o Senhor (Mt 10, 22).
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Sempre pesou sobre a mente dos homens como doloroso mistério a aparente indiferença de Deus diante do desenrolar dos acontecimentos neste mundo. A iniqüidade e a desonestidade campeiam na história, solapando o bem e os bons, sem que o Eterno intervenha para coibir a desordem e restaurar a escala de valores. Os fiéis do Senhor sentem-se, por vezes, desanimados e propensos a “fazer como todo o mundo faz”, visto que ser reto e digno parece custar muito caro e não trazer proveito. – É óbvio que tais conclusões não podem ser verídicas. É preciso, porém, refletir sobre o problema. É o que faremos nas páginas subseqüentes.
1. A perplexidade
Para não nos estender demais, partiremos das “queixas” dos homens de Deus no Antigo Testamento.
1.1. No Antigo Testamento
1. Um dos depoimentos mais impressionantes é o do Profeta Jeremias (seculo VI a.C.). Este homem de Deus cumpria a ingrata missão de anunciar ao povo de Judá a próxima invasão dos babilônios e a ordem, proveniente do Senhor Deus, de não fazerem aliança com os egípcios para se defenderem. Isto parecia absurdo ao rei e aos cidadãos de Jerusalém, que, por causa disto, maltratavam Jeremias portador de tais oráculos. Em conseqüência, disse o Profeta certa vez:
“Tu és justo demais, Senhor, para que eu entre em processo contigo. Contudo falarei contigo sobre questões de direito. Por que prospera o caminho dos ímpios? Por que os apóstatas estão em paz?
Tu os plantaste; eles criaram raízes, vão bem e produzem fruto. Tu estás perto de sua boca, mas longe dos seus rins… Eles dizem: ‘Deus não vê o nosso futuro’ ” (Jr 12, 1-4).
As palavras de Jeremias não obtiveram explicações da parte do Senhor. Este apenas pediu ao Profeta que se dispusesse a enfrentar maiores desafios. Cf. Jr 12, 5: “Se a corrida com os caminhantes te cansa, como queres competir com os cavalos?”.
2. O Profeta Habacuc (século VII/VI a.C.) assim se lamentava, por sua vez:
“Até quando, Senhor, pedirei socorro e não ouvirás? Gritarei a ti: ‘Violência!’ e não salvarás? Por que me fazes ver a iniqüidade e contemplar a opressão? Rapina e violência estão diante de mim… Por isto a lei se enfraquece e o direito nunca mais aparece! Sim, o ímpio cerca o justo; por isto o direito aparece torcido!” (Hab 1, 2-4).
E qual a resposta?
“Vou ficar de pé em meu posto de guarda… e espreitar para ver o que Ele me dirá… Então Javé respondeu-me dizendo: ‘Escreve a visão, grava-a claramente sobre tábuas para que se possa ler facilmente. Porque é ainda uma visão por um tempo determinado… Se ela tarda, espera-a, porque certamente virá, não falhará… O justo viverá por sua fidelidade” (Hab 2, 1-4).
Também desta vez não foi elucidado ao Profeta o problema do “silêncio de Deus”.
3. A mesma perplexidade transparece no texto de Ml 2, 17 (século Va.C.):
“Vós cansais o Senhor com vossas palavras! – Mas vós dizeis: ‘Em que o cansamos?’ – Quando dizeis: ‘Quem pratica o mal, é bom aos olhos do Senhor; nestes ele se compraz!’ Ou então: ‘Onde está o Deus da Justiça?’”
4. O salmo 72 é também testemunho da angústia suscitada pela prosperidade dos maus e provocadora do desânimo do próprio salmista. Este finalmente reage à tentação de imitar os ímpios e encontra seu reconforto em Deus:
“Por pouco meus pés tropeçavam; um nada, e meus passos deslizavam. Porque invejei os arrogantes, vendo a prosperidade dos ímpios. Para eles não existem tormentos, sua aparência é sadia e robusta; a fadiga dos mortais não os atinge, não são molestados como os outros…
Refleti para compreender, e que fadiga era isto aos meus olhos! Até que entrei nos santuários divinos: entendi então o destino deles! De fato, tu os pões em ladeiras, tu os fazes cair em ruínas. Ei-los num instante reduzidos ao terror, deixam de existir, perecem por causa do pavor!… Sim, os que se afastam de Ti se perdem… Quanto a mim, estar junto de Deus é o meu bem!” (Si 72, 2-5.16-19.27s).
Este salmo, além de manifestar o desatino do justo, apresenta a intervenção final de Deus, que distingue a sorte dos maus e a dos bons.
Como se vê, o Antigo Testamento faz eco vivo aos sentimentos dos homens de bem desconcertados pelo silêncio de Deus perante os desafios dos ímpios.
Passemos a outras facetas do problema.
1.2. Na literatura contemporânea
Atravessando os séculos, consideramos os dizeres de escritores dos nossos tempos, em cujas obras se encontram veementes queixumes, atingindo as raias da blasfêmia.
1. Tais são, por exemplo, os dizeres que Nikos Kazantzaki, o escritor grego,[1] atribui a Zorba no seu romance “Alexis Zorba”:
“Eu te digo, patrão, tudo o que acontece neste mundo é injusto, injusto! Eu, o verme da terra, a lesma Zorba, eu não o aprovo. Por que é preciso que os jovens morram e que fiquem os velhos destroços? Por que as criancinhas morrem? Eu tinha um menino, um pequeno Dimitri, eu o perdi com três anos e nunca, nunca (tu me ouves?) eu perdoarei isto ao bom Deus! No dia da minha morte, se ele tiver a ousadia de se apresentar diante de mim, e se é um Deus para valer, ele terá vergonha! Sim, sim, ele terá vergonha diante de mim, a lesma Zorba!” (Alexis Zorba, P/on 1954, p. 272).
2. Eis agora o depoimento do jovem Elie Wiesel, judeu que esteve no campo de concentração de Birkenau:
“Nunca esquecerei essa noite, a primeira noite do campo de concentração, que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes aferrolhada.
Nunca esquecerei aquela fumaça.
Nunca esquecerei os semblantes daquelas crianças cujos corpos eu vi transformar-se em ondas de fumaça sob um céu azul mudo.
Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram para sempre a minha fé.
Nunca esquecerei aquele silêncio da noite que me privou para sempre do desejo de viver.
Nunca esquecerei aqueles instantes que assassinaram o meu Deus e a minha alma e os meus sonhos, que tomaram o semblante do deserto.
Nunca esquecerei essas coisas, mesmo que eu seja condenado a viver tão longamente quanto Deus mesmo. Nunca!
Um dia, quando voltávamos do trabalho, vimos três postes erguidos na Praça da Chamada, três corvos negros. Fez-se a chamada. Os S. S.[2] em torno de nós estavam com as metralhadoras apontadas; tal era a cerimônia tradicional. Três condenados acorrentados e entre eles o menino, o anjo de olhos tristes.
Os S.S. pareciam mais preocupados, mais inquietos do que de costume. Enforcar um garoto diante de milhares de espectadores não era coisa de pouca monta. O chefe do campo leu o veredicto. Todos os olhos estavam fixos na criança. Esta, lívida, quase calma, mordia os lábios. A sombra do poste a recobria.
Dessa vez o Lagerkapo[3] recusou o papel de carrasco. Três S S. o substituíam.
Os três condenados sentaram-se simultaneamente nas suas cadeiras. Os três pescoços foram introduzidos, ao mesmo tempo, dentro dos nós das respectivas cordas.
‘Viva a liberdade’: gritaram os dois adultos. O menino calava-se.
– ‘Onde está o Bom Deus, onde está?’, perguntou alguém atrás de mim.
A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras foram sacudidas.
Silêncio absoluto em todo o campo! No horizonte o sol se punha.
– ‘Descubram-se!’, berrou o chefe do campo. Sua voz estava rouca. Quanto a nós, chorávamos.
— ‘Cubram-se!’
A seguir, começou o desfile. Os dois adultos já não viviam. A sua língua estava de fora, inchada, azulada. Mas a terceira corda não estava imóvel; tão leve, o menino vivia ainda…
Por mais de meia-h ora, ficou assim a lutar entre a vida e a morte, agonizando diante dos nossos olhares. E nós tínhamos que considerá-lo bem de frente. Ainda estava vivo quando passei na frente dele. A sua língua ainda estava vermelha, seus olhos não se tinham apagado.
Atrás de mim, eu ouvia o mesmo homem perguntar:
– ‘Onde está Deus?’
E eu ouvia, em mim, uma voz que lhe respondia:
– ‘Onde está Deus? Ei-lo: ele está pendurado aqui a este poste!’
Na véspera de Roch-Hachanah… dez mil homens tinham vindo para assistir ao Ofício solene: chefes de bloco, Kapos, funcionários da morte.
– ‘Bendizei o Eterno…’
A voz do oficiante fizera-se ouvir. Julguei primeiramente que era o vento.
– ‘Bendito seja o nome do Eterno!’
Milhares de bocas repetiam o louvor, prostravam-se como árvores na tempestade.
– ‘Bendito seja o nome do Eterno!’
Por que, por que eu o bendiria? Todas as minhas fibras se revoltavam. Porque ele fez queimar milhares de crianças nas suas fossas? Porque ele fazia funcionar seus fornos crematórios dia e noite, nos sábados e nos dias de festa? Porque, em seu grande poder, ele tinha criado Auschwitz, Birkenau, Buna e tantas usinas da morte? Como lhe poderia eu dizer: ‘Bendito sejas Tu, o Eterno, Senhor do universo, que nos escolheste entre os povos para sermos torturados dia e noite, para ver nossos pais, nossas mães, nossos irmãos acabar no crematório? Louvado seja teu santo Nome, Tu que nos escolheste para sermos estrangulados no teu altar?
Eu ouvia a voz do oficiante elevar-se, poderosa e alquebrada ao mesmo tempo, em meio às lágrimas, aos soluços, aos suspiros de toda a assembléia:
– ‘A terra inteira e o universo pertencem a Deus!’
Ele parava a cada momento, como se não tivesse a força para dar aos nomes o seu conteúdo. A melodia se estrangulava na sua garganta.
E eu, o místico de outrora, pensava: ‘Sim, o homem é o mais forte, maior do que Deus. Quando foste decepcionado por Adão e Eva, tu os expulsaste do paraíso. Quando a geração de Noé te desagradou, mandaste o dilúvio. Quando Sodoma não mais encontrou graça aos teus olhos, fizeste chover fogo e enxofre do céu. Mas esses homens que Tu enganaste, que tu deixaste torturar, estrangular, envenenar pelo gás, calcinar, que fazem eles? Rezam na tua presença! Louvam o teu nome!’
Outrora o dia do Novo Ano dominava a minha vida. Eu sabia que meus pecados contristavam o Eterno e implorava o seu perdão. Outrora eu acreditava profundamente que de um só dos meus gestos, que de uma só de minhas orações dependia a salvação do mundo.
Hoje eu não implorava mais. Já não era capaz de gemer. Ao contrário, eu me sentia muito forte. Eu era o acusador. E o acusado era Deus. Meus olhos se tinham aberto, e eu estava só, terrivelmente só no mundo, sem Deus, sem homens, sem amor nem compaixão. Eu não era mais do que cinzas, mas eu me sentia mais forte do que o Todo-Poderoso, ao qual haviam ligado a minha vida por tanto tempo. Em meio a essa assembléia de oração, eu era como um observador estranho…
Yom Kippur. O dia do Grande Perdão.
Eu não jejuei. Primeiramente, para dar prazer ao meu pai, que me proibira de o fazer. Depois, não havia razão alguma para que eu jejuasse. Eu não aceitava mais o silêncio de Deus. Engolindo a minha tigela de sopa, eu via nesse gesto um ato de revolta e de protesto contra Ele.
No fundo do meu coração, eu sentia que se fizera um grande vazio” (Elie Wiesel, La Nuit. Ed. de Minuit 1958 pp. 60. 103-105. 107-111).
Eis outro trecho tirado da carta de um anônimo, vítima da guerra de 1939-1945 em Stalingrado:
“Em Stalingrado entregar-se a Deus significa negar a existência dele. Isto, eu o devo dizer, caro pai, e sofro duplamente por dizê-lo. Desde que mamãe me foi retirada, tu sempre me educaste na presença de Deus… É por isto que lamento duas vezes essa declaração da qual não me arrependerei.
… Em tua última carta tu me falas da Verdade apenas, e daquilo que os homens julgam ser a Verdade… Procurei Deus em cada buraco provocado pelas bombas, em cada casa destruída, em cada esquina de rua, junto a cada colega, quando eu estava recolhido num funil… Procurei-o até no céu… E Deus nunca se mostrou, embora o meu coração todo gritasse por ele. As casas estavam arrazadas, os colegas eram tão corajosos ou tão covardes como eu… Na terra só reinavam morticínio e fome; do céu derramavam-se bombas e fogo; somente Deus estava ausente! …
Não, pai! Deus não existe!… Ou então, se existe um Deus, existe para vós, nos Missais e nos cânticos, nos sermões cheios de devoção dos Vigários e dos pastores; Ele existe talvez no ressoar dos sinos e nos vapores de incenso, mas não existe em Stalingrado!!” (Lettres de Stalingrad, Ed. Buchet-Chastel, Lettre 17, pp. 67-68).
As citações até aqui feitas bem evidenciam o problema, para o qual a reflexão cristã não pode deixar de se voltar atentamente. À luz da fé, eis o que se há de dizer:
2. Refletindo cristãmente…
Cinco proposições parecem ilustrar o problema.
2.1. Um Deus falho?
À primeira vista, o silêncio de Deus significa indiferença ou displicência do Criador diante das desgraças dos homens. – Ora a impressão de que Deus é omisso ou sádico é insustentável aos olhos da sã razão: se Deus existe, Ele há de ser necessariamente o Ser perfeito, no qual justiça, amor, providência… se encontrem em grau sumo… Um Deus falho ou deficiente não é Deus; não se combinam entre si a noção de Deus e a de imperfeição. É mais lógico não crer em Deus do que crer num Deus culpado.
Por isto a sã razão e a fé afirmam que Deus não está ausente aos problemas dos homens, nem pode pactuar com o mal. Os avanços da malvadeza no mundo lhe são conhecidos; Ele os repudia (não pode deixar de os repudiar). Se, porém, Ele os permite, só o faz porque quer deixar que os homens – criaturas livres – exerçam a liberdade, com os seus possíveis desatinos. Contudo a Providência Divina jamais permitiria os tropeços da liberdade humana se não tivesse recursos para daí tirar algum bem ou mesmo bens maiores. Estas afirmações são absolutamente certas ou verídicas não só aos olhos da fé, mas também aos da razão humana.
Donde se segue que se faz mister
2.2. Sondar o sentido do silêncio de Deus
Não é possível ao homem explicar cada qual das desgraças que afetam a história. Mas nem por isto o cristão é obrigado a calar-se por completo diante do problema.
Com efeito. O Deus que se cala, não é um Deus mudo. De um mudo não se pode esperar que fale. Ao contrário, o Deus da fé cristã é o Deus que se revelou, … que falou e que falará. Aliás, a S. Escritura insinua ao homem algo de aparentemente paradoxal: é precisamente nos momentos de maior desespero e perplexidade que Deus prepara as suas intervenções mais retumbantes. O protótipo deste procedimento divino é precisamente a Páscoa cristã: em meio ao desatino e à decepção dos Apóstolos, que haviam presenciado o “fracasso” de seu Mestre sem um sinal da parte do Pai, ressurgiu o Cristo como o Kyrios, o Senhor da vida e da morte; a Luz brilhou nas trevas que dominavam a mente dos Apóstolos; o silêncio mais profundo cedeu à Palavra mais significativa.
Outro exemplo típico deu-se por ocasião da primeira Páscoa ou da Páscoa dos israelitas: estes, certa vez, se viram imprensados entre o Mar Vermelho e o exército do Faraó que os perseguia; não viam solução e, por isto, caíram no desânimo e na murmuração; foi precisamente então que o Senhor Deus interveio, além de toda expectativa. Tal é o relato de Ex 14, 9-16:
“Os egípcios perseguiram Israel com todos os cavalos e carros de Faraó, e os cavaleiros e o seu exército, e os alcançaram acampados junto ao mar, perto de Piairot, diante de Baal Sefon. Quando Faraó se aproximou, os filhos de Israel levantaram os olhos e eis que os egípcios vinham atrás deles. Tiveram grande medo. Então os filhos de Israel clamaram ao Senhor. Disseram a Moisés: ‘Não havia talvez sepulturas no Egito, e por isso nos tiraste de lá para morrermos no deserto? Por que nos trataste assim, fazendo-nos sair do Egito? Não é isto que te dizíamos no Egito: Deixa-nos, para que sirvamos os egípcios? Pois melhor nos fora servir aos egípcios do que morrermos no deserto’. Moisés disse ao povo: ‘Não temais; permanecei firmes e vereis o que o Senhor fará hoje para vos salvar; porque os egípcios que hoje vedes, nunca mais os tornareis a ver. O Senhor combaterá por vós e vós ficareis tranqüilos’.
O Senhor disse a Moisés: ‘Por que clamas por mim? Dize aos filhos de Israel que marchem. E tu levanta a tua vara, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel caminhem em seco pelo meio do mar”‘.
Toda a Tradição cristã explorou esses “paradoxos” da Providência Divina, vendo precisamente nos silêncios de Deus ocasiões para que o cristão cresça na fé e na confiança em Deus. Sim; os silêncios de Deus obrigam o fiel a apurar os seus ouvidos interiores e a criar novas antenas para tentar compreender os desígnios do Criador. Pode-se dizer que os silêncios de Deus são partes integrantes de uma melodia na qual, além das notas altamente sonoras, há os intervalos, que também contribuem para a beleza da música. É preciso saber entender esses intervalos no contexto da melodia que se desenvolve. Paralelamente é preciso que o cristão não se deixe submergir pela inclemência do momento, mas o considere no contexto da Providência Divina em sua vida.
Acrescentemos outra proposição.
2.3. Caminhar no silêncio de Deus
Não basta refletir sobre o sentido das disposições de Deus sobre o homem. É necessário que o cristão não pare na caminhada da vida por razões de surpresa e perplexidade. Caminhe “como se visse o Invisível” (Hb 11, 27). Uma imagem ajuda a compreender esse caminhar:
Há jogos de crianças que constam de peças de letras desmanteladas. Pede-se à criança que tente juntar esses fragmentos, combinando-os entre si, de modo a descobrir a palavra que as respectivas letras formam. À primeira vista, podem essas peças suscitar impaciência e desdém; o quebra-cabeça parece não ter solução… Todavia com perseverança a criança vai conseguindo juntar fragmento com fragmento e descobre o sentido da charada desafiadora. O começo do jogo é difícil, mas, na medida em que se vão combinando as peças, torna-se cada vez mais fácil. Pode-se dizer que algo de análogo se dá com o plano de Deus: os acontecimentos da vida hão de ser ilustrados uns pelos outros, para que se perceba a sua mensagem.
O cristão tem que soletrar a Palavra de Deus letra por letra; ninguém sabe qual a letra que se seguirá àquelas que já foram lidas. Ninguém sabe qual palavra as letras formarão. Mas é preciso fazer o jogo, tentar juntar as letras e ir lendo… Não espere o cristão que a Palavra esteja completa para começar a caminhar, sabendo para onde vai; quem assim espera, jamais se põe a caminho ou entra em ação. Gostaríamos de encontrar o discurso de Deus pronto e nítido ou um caminho claramente traçado. Todavia não é este o desígnio de Deus. É caminhando no claro-escuro que “fazemos Deus falar”; descobrimos o discurso de Deus na medida em que progredimos.
Ainda outra imagem nos acode:
Consideremos um pontilhado, à primeira vista, ilegível, como o que se segue:
Numa primeira abordagem, o leitor dirá que está diante de um pedaço de papel manchado por pingos de tinta; ou estes são apagados ou se joga fora o papel assim “inutilizado”, pensará ele. Todavia, se alguém tem a paciência de juntar entre si as “manchas de tinta” ou os borrões do papel, verifica que têm significado grandioso ou são portadores de rica mensagem:
É o nome de Deus revelado a Moisés – J H V H – que se depreende desse pontilhado aparentemente insignificante ou que se depreende da conjugação dos diversos acontecimentos da história; esta fala de Deus e de seu sábio plano.
Fazendo a vontade do Senhor e caminhando dia-a-dia numa entrega confiante à Providência, o cristão vai compreendendo a sua mensagem santa e sábia. Ela se patenteia aos fortes e corajosos.
2.4. Continuar a invocar a Deus
Se Deus parece calar-se, o homem não tem o direito de silenciar diante dele. Deus tem razões providenciais para não se fazer ouvir como nós O quiséramos ouvir, mas o homem não tem motivo para calar-se diante de Deus a não ser a perda de fé e confiança. Por conseguinte, o cristão continuará a rezar, mesmo que o Senhor lhe pareça distante; faça-o como pode, mesmo que a sua prece lhe pareça mal alinhavada ou descosida. Foi o próprio Senhor quem incitou a rezar sempre e nunca desfalecer (cf. Lc 18, 1); foi Ele quem prometeu que toda oração feita em seu nome seria atendida (cf. Jo 16, 23s). Ele não falta, todavia a hora de Deus nem sempre é a hora que os homens lhe querem predefinir: “Ele diz: ‘No tempo favorável eu te ouvi. E no dia da salvação vim em teu auxílio’ ” (2Cor 6, 2; cf. Is 49, 8).
Só o fato de alguém perseverar na oração em meio à aridez e ao desconcerto da sua natureza é testemunho de que a graça de Deus trabalha nesse cristão; o Senhor lhe está muito presente e disposto a prestar-lhe o auxílio necessário.
2.5. Silêncio de Deus e covardia da criatura
Até aqui consideramos o silêncio de Deus que ocorre sem culpa do homem. O Senhor Jesus, porém, e a Tradição apontam casos em que Deus fala, sim, mas a criatura não lhe dá ouvidos; é leviana, superficial ou mesmo… covarde. Ela então queixa-se de Deus, quando deveria acusar a si mesma.
No Evangelho, por exemplo, lêem-se as seguintes advertências de Cristo:
Lc 8, 18: “Cuidai do modo como ouvis!”
Jo 8, 37: “Minha palavra não penetra em vós. Por isto procurais matar-me”.
Jo 5, 39s: “Vós perscrutais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna; ora são elas que dão testemunho de mim; vós, porém, não quereis vir a mim para terdes a vida”.
Jo 5, 45-47: “Não penseis que vos acusarei diante do Pai; Moisés é o vosso acusador, ele em quem pusestes a vossa esperança. Se crêsseis em Moisés, haveríeis de crer em mim, porque foi a meu respeito que ele escreveu. Mas, se não credes em seus escritos, como crereis em minhas palavras?”.
Entre os antigos ascetas cristãos era costume procurarem os mais jovens encontrar-se com os mais velhos no deserto, a fim de lhes pedirem uma palavra de orientação e de vida. A sentença assim proferida pelos anciãos era altamente estimada como se fosse a Palavra do próprio Deus. Havia, porém, casos em que os mais velhos se recusavam a falar aos seus jovens interlocutores, percebendo que estes não estavam dispostos a seguir os ditames do caminho da perfeição; faltava-lhes a docilidade e a liberdade de coração.
Eis dois apoftegmas que referem tais episódios:
“Um irmão foi procurar o abade Teodoro de Fermé e durante três dias suplicou-lhe que lhe dissesse uma palavra. Mas Teodoro não lhe respondeu. O irmão então foi-se muito triste. O discípulo de Teodoro disse então: ‘Pai, por que nada lhe disseste? Ele se foi muito triste: Respondeu o ancião: Acredita-me. Eu nada lhe disse, porque é um traficante, que se quer gloriar com as palavras dos outros’ –
“Alguns irmãos foram procurar o abade Félix e lhe pediram uma palavra. O ancião se calava. Repetiram várias vezes o seu pedido. O ancião respondeu-lhes: Agora já não há palavras. Outrora, quando os irmãos
interrogavam os anciãos e faziam o que estes mandavam, Deus inspirava aos anciãos a maneira de falar. Agora perguntam e não põem em prática o que se lhes diz; por isto Deus retirou aos anciãos a graça da palavra e já não sabem o que dizer, porque não há quem o cumpra : Ao ouvir tal resposta, os irmãos puseram-se a chorar e disseram: ‘Pai, reza por nós’ ” (Los sentences des Pères du désert. Solesmes 1966, p. 177).
A superficialidade ou a falta de disposições interiores frente à Palavra de Deus foi, certa vez, severamente comentada por São João Crisóstomo (+407), bispo de Constantinopla, em uma de suas homilias:
“Quem de nós se torna melhor depois de haver freqüentado a igreja durante um mês? É isto que devemos ter em vista. Pois, na verdade, mesmo aquilo que parece ser uma boa ação, é apenas uma má ação quando não surte o seu efeito. E se se tratasse disto somente! Na verdade, há algo de muito pior. Dizei-me: Que proveito tirais das reuniões? Se tirásseis daí alguma vantagem, desde muito levaríeis uma vida autenticamente cristã. Tantos profetas vos falaram duas vezes por semana; tantos apóstolos, tantos evangelistas! Todos eles vos explicam as verdades da salvação e vos expõem com muita precisão o que poderia fazer reinar a ordem na vossa vida” (Hom. sobre os Atos dos Apóstolos).
Verdade é que não se pode avaliar o crescimento espiritual em termos aritméticos, como se mede o crescimento de uma planta. “O justo vive da fé”, diz São Paulo (Rm 1, 17; GI 3, 11; Hb 10, 38). Deus não pede aos seus fiéis vitórias registradas e festejadas, mas pede a luta árdua e teimosa, sustentada pela fé e a esperança inabaláveis do cristão. Por isto é difícil, em alguns casos, perceber o progresso espiritual de alguém. Como quer que seja, resta margem para suspeitar que, em não poucos casos, haja indiferença ou tibieza, que impermeabiliza o cristão à penetração da Palavra de Deus. Este então parece calar-se. A criatura reclama, quando na verdade lhe competiria fazer sincero exame de consciência e reavivar a sua fé e sua generosidade. Diz o próprio Senhor através do salmista:
“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações como… no deserto, quando vossos pais me provocaram e tentaram, embora vissem as minhas obras” (Hb 3, 7-10; cf. SI 94, 7-11).
São estas algumas ponderações que contribuem para que o cristão aceite os silêncios de Deus ou mesmo comece a perceber melhor a voz do Senhor no aparente deserto em que julga estar. É absolutamente certo que um Deus “omisso” ou “esquecido” não é Deus. Se a criatura é solícita e atenciosa, ela só o é porque recebeu do Criador Perfeito estes predicados; Ele é a Fonte, da qual cada ser criado recebeu um filete…
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NOTAS:
[1] Nikos Kazantzaki é o autor que inspirou Martin Scorcese na produção do filme “A última Tentação de Cristo”.
[2] S. S eram os agentes de Segurança do nacional-socialismo.
[3] Chefe do acampamento.