Deus: o melhor mundo possível?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 085/1967)


«Deus, criando este mundo, terá feito o melhor mun­do possível ?

Não poderia ter criado um mundo melhor ?»

O filósofo alemão Leibniz (Godofredo Guilherme, barão de), † 1716, julgava que Deus, sendo infinitamente bom, esta­va obrigado a criar, e a criar o melhor mundo possível. O mundo que existe, portanto, dizia ele, é o melhor dos mundos possíveis; os males que nele se encontram, só dão ocasião ao bem, e não prevalecem sobre este.

Tais idéias ainda têm voga em nossos dias. Pergunta-se: como se poderia entender a infinita Bondade de um Deus que não criasse o melhor dos mundos possíveis? Doutro lado, porém, surge a questão: será de fato este mundo o melhor possível?

É sobre estas dúvidas que vamos abaixo refletir, procu­rando pôr de lado todo antropomorfismo ou a excessiva ten­dência a conceber Deus à semelhança do homem.

1. Deus obrigado a criar?

Logo de início, talvez diga alguém:

Deus, que é todo-poderoso, podia criar ou expandir a sua Bondade.

Ora quem pode causar um bem e não o faz, é digno de censura.

Por conseguinte, para que Deus seja irrepreensível ou possa ser tido como a Bondade Infinita, devia criar.

Que pensar a respeito?

– Tal raciocínio, aparentemente impecável, nada conclui no caso considerado. De fato, somente as criaturas (homens ou anjos) podem incorrer em censura por não fazerem o bem que esteja ao seu alcance. Sim; toda criatura, sendo limitada ou deficiente, pode sempre aperfeiçoar-se, e em muitos casos está mesmo moralmente obrigada a isto. Por sua natureza mesma, a criatura está sujeita a uma lei: tender ao Absoluto; ela deve procurar, dentro das suas capacidades, mais e mais elevar a si e elevar os demais seres finitos que a cercam. Em outros termos ainda: toda criatura traz em si potencialidades para o bem e, essas potencialidades, ela não pode deixar de querer atuá-las sem frustrar o seu ideal, sem pecar contra si mesma e contra a reta ordem das coisas. Por isto «deixar de fazer o bem» pode ser repreensível para a criatura ou para um ser que é lacuna capaz de mais participar do Bem.

O mesmo, porém, não se dá com Deus. – Deus, por defi­nição sendo o Infinito ou Absoluto, não deve nem pode ten­der…; seria contraditório imaginar que o Altíssimo esteja obrigado ao que quer que seja.

Dizíamos que, quando uma criatura pratica o bem, ela ganha alguma coisa (pois a criatura pode sempre progredir). O mesmo, porém, não se dá com Deus. Na hipótese de que Deus crie alguma coisa, Ele não ganha perfeição. Quando Deus cria, Ele apenas dá, nada recebe; é o que nos faz compreender as palavras de Jesus: «É mais feliz (= mais belo, mais próximo do comportamento divino) dar do que receber» (At 2a, 35). – Nem se pode dizer que, após a criação, existe mais perfeição ou existe mais ser; na verdade, existem apenas mais sujeitos portadores do ser. Isto se compreende bem mediante a seguinte analogia: quando um mestre comunica a sua ciência aos discí­pulos, não se pode dizer que a ciência do mestre cresce; apenas se verifica que novos sujeitos se tornam portadores de ciência: o nível de ciência do mestre não se eleva pelo fato de que outras pessoas compartilhem tal ciência.

Por conseguinte, «Deus mais o mundo» (Deus, na hipó­tese de criar) não representa mais perfeição do que «Deus sem o mundo» (Deus, na hipótese de não criar).

Destas considerações se segue que Deus, sendo todo-pode­roso, pode expandir sua infinita perfeição segundo infinitas modalidades. Não está, porém, obrigado a fazê-lo segundo uma só dessas modalidades sequer.

Eis por que se deve dizer que Deus não tinha obrigação de criar. Se criou, fe-lo de maneira libérrima, unicamente para difundir bondade.

Pergunta-se agora: dado que Deus tenha decretado criar, não estava obrigado a fazer o melhor mundo possível ?

2. O melhor mundo possível ?

Responderemos: a noção de «o melhor mundo possível» é algo de incoerente e impossível (como também incoerente é o conceito de «o movimento mais rápido possível»).

Com efeito, qualquer mundo, pelo fato mesmo de ser cria­do, é limitado, finito e, por isto, sujeito a deficiências e falhas. Sempre se poderá conceber outro mundo, menos limitado e finito. Não há um mundo «ótimo» ou um mundo acima do qual não se possa conceber outro melhor; não pode portanto existir um mundo infinitamente bom e perfeito. Em verdade, não se atinge o infinito aumentando a série ou o grau de per­feição dos seres finitos; estes darão sempre um total finito.

Donde se vê que não se pode imaginar «algum mundo que seja o melhor de todos». Tal mundo seria «Não» e «Sim» ao mesmo tempo: não seria Deus, por haver sido criado ou produzido pelo próprio Deus; doutro lado, seria Deus, por ser infinito ou por não admitir acréscimo
em suas perfeições.

Em conseqüência, seja removida de nossas reflexões a hipótese de que Deus, ao decretar a criação, tivesse que optar por um mundo acima do qual não se pudesse imaginar outro, mais perfeito. Exigir, para que Deus seja irrepreensível, que Ele fizesse o melhor dos mundos possíveis, seria exigir que fizesse o que não pode ser feito ou realizasse o absurdo.

Consequentemente, interroga-se: a que estava Deus obri­gado, ao decretar livremente a obra da criação ?

3. Obrigado a quê ?

Na frase acima, «obrigado» não implica em imposição apresentada a Deus por algum agente extrínseco, mas significa exigência da própria, perfeição divina (Bondade, Justiça, Sabedoria). Em termos negativos, indagar-se-ia: que é que Deus não poderia fazer em hipótese alguma, já que Ele é a infinita Bondade ou a Perfeição absoluta ?

– Deus não poderia criar um mundo radicalmente mau ou um mundo em que simplesmente triunfasse o absurdo, um mundo cuja história se encerrasse pela vitória do mal sobre o bem, como admitiram, por exemplo, os filósofos modernos Arthur Schopenhauer, † 1860, e Eduardo von Hartmann, † 1906.

Por conseguinte, ao criar seres finitos, limitados e, por isto, falíveis («seres criados infalíveis» são algo de impossível, pois o infalível é incriado, é o ser infinito, é somente Deus), o Senhor apenas está obrigado a fazer dos males ou das falhas de suas criaturas a ocasião de triunfo do bem. Figuradamente diríamos: após haver semeado trigo em seu campo, Deus, ao ver aparecer o joio, não está obrigado a arrancar imediatamen­te esta erva daninha, mas pode deixá-la crescer até profligá-la definitivamente na consumação dos tempos; arrancando o joio, Ele poderia eliminar também algo do trigo; isto poderia subtrair ao bem e aos bons a ocasião de se exercer e de desenvolver plenamente as suas faculdades boas.

Equivalentemente: Deus só não pode permitir que o mal devaste a sua obra e diga a última palavra; Ele só pode permitir o mal em função do bem.

O Criador, por conseguinte, estava obrigado por sua Bondade a fazer um mundo que, no seu conjunto e na consumação da sua história, fosse bom; esse mundo pode, em verdade, apresentar seus aspectos de lacunas e deficiências (devidas não a Deus, mas à falibilidade natural das criaturas); contudo esses aspectos particulares obscuros ou pálidos serão dominados pela tonalidade boa do conjunto, serão tragados pela característica boa do total; as lacunas das criaturas equivalem assim às pausas e aos intervalos silenciosos necessários numa melodia, ao lado de passagens extremamente vivazes, para que a harmonia se torne devi­damente sinfônica e bela.

Estabelecido tal princípio, vê-se que restava a Deus uma vastíssima escala de mundos bons, entre os quais Ele podia escolher um determinado, ao decretar a obra da criação. O Senhor não estava obrigado a querer tal mundo bom, de pre­ferência a tal outro mundo bom.

Sem dúvida, Deus podia criar um mundo em que não houvesse nem pecado nem outros males. Para tanto, Ele deveria continuamente intervir no curso natural das criaturas, impedindo mediante milagres sucessivos o exercício da falibilidade das mesmas. Deus teria dado às criaturas a sua respectiva natureza, mas impediria o ritmo natural da história, provocando um curso artificial dos acontecimentos; as exce­ções se tornariam regra. Ele não o quis fazer, nem estava obrigado a querê-lo; o que Lhe incumbia, era servir-se dos próprios males e pecados para ocasionar o bem e dar a vitória definitiva a este, ainda que o faça de maneira misteriosa para nós (é claro que deve haver mistério ou algo de transcendente nas obras de Deus infinitamente sábio, algo, portanto, que a criatura nunca conseguirá abarcar com a sua inteli­gência finita).

Assim se compreende que Deus tenha decretado criar o mundo que atualmente existe.

Passemos agora a

4. Duas questões complementares

a) Deus poderia tornar melhor o mundo presente ?

Não se pergunta se Deus poderia acrescentar partes novas a este mundo, produzindo espécies de criaturas mais numerosas e mais nobres, fazendo enfim um conjunto mais vasto e mais rico. Com isto, ter-se-ia um outro mundo.

O que se indaga é se Deus, conservando o número e as espécies de criaturas existentes, poderia torná-las mais harmoniosas entre si. Em particular, no tocante aos seres livres, poderia Deus fazer que os homens fossem mais virtuosos, mais prudentes, bondosos e sábios ? Poderia evitar que o avanço do mal fosse tão vultoso e provocador? Poderia impedir tantos crimes horrendos? Poderia também deter tal ou tal catástrofe, como o desabamento de um edifício, de uma ponte, que ocasiona a morte simultânea de bons e maus, de réus e inocentes?

– Sim; Deus o poderia.

– Como ?

– Mediante intervenções maravilhosas ou milagrosas. Neste caso, porém, Deus instauraria um regime mais ou menos extraordinário neste mundo; tendo estabelecido uma ordem, Ele retocaria essa ordem para instituir duas ordens de coisas a «ordinária» e a «extraordinária». E, ainda que Deus assim impedisse muitos dos males que ocorrem, tornando melhor este mundo, dever-se-ia dizer que, após ter feito isso, Ele ainda

po­deria melhorar o mundo melhorado; todo e qualquer mundo melhor poderia ainda tornar-se melhor; não há mundo algum capaz de exprimir adequadamente a infinita Bondade de Deus; entre o finito (o mundo, qualquer que seja) e o Infinito (Deus) há sempre uma distância intransponível.

Por isto conclui-se que Deus, tendo criado um mundo (finito e limitado, como é qualquer criatura), está apenas obrigado a fazer que o mal não prevaleça finalmente sobre o bem, mas, ao contrário, ceda ao bem a vitória definitiva.

b) Deus poderia ter criado melhor (ou de melhor modo) este mundo?

Responda-se negativamente. Deus, que podia ter colocado neste mundo mais justiça, mais sabedoria e mais amor, não podia ter aplicado mais justiça, mais sabedoria e mais amor na obra de criação do mundo. Foi com justiça, sabedoria e amor infinitos que Ele dispôs a atual ordem de coisas, e é com os mesmos santos predicados que Ele encaminha todos os acon­tecimentos, tanto os progressos do bem como os avanços do mal, para que produzam o bem comum no fim da história.

Após tais considerações, que se impõem pela lógica (remo­vidos os antropomorfismos e o sentimentalismo), o espírito humano se queda silencioso diante da transcendente Majestade de Deus; ao sondar os planos da sua infinita Sabedoria, senti­mo-nos impotentes para os reduzir às nossas categorias. Perce­bemos que a única resposta digna da parte do homem é um ato de adorarão profunda, cheia de absoluta confiança e de entrega incondicional aos arcanos desígnios de uma bondade que, justa­mente por ser muito maior do que a nossa, tem que ser incom­preensível aos nossos olhares. A criatura estará sempre bem ( … muito bem) se se abandonar, com humildade e amor, ao seu Criador; só existimos porque Deus nos ama.