(Revista Pergunte e Responderemos, PR 442/1999)
Em síntese: Não se pode dizer que a tese da reencarnação é de livre opção para um fiel católico. A Escritura, a Tradição oral e escrita assim como o magistério da Igreja a tem como incompatível com a fé cristã. De modo especial é abordada, no artigo subseqüente, a questão da autoridade do magistério da Igreja: este, mesmo quando não se pronuncia solenemente numa definição de Concílio ou do Papa (ex cathedra), goza da assistência infalível de Cristo e do Espírito Santo (cf. Mt 28,18-20; Jo 14,26; 16,13-15), de modo que tem valor decisório quando os Bispos, unidos ao Papa, ensinam unanimemente alguma verdade de fé ou de Moral.
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Às pp. 131s. do seu livro “Uma Vida ou muitas?”, Carlos Vallés afirma que a doutrina da reencarnação não é incompatível com a fé católica, visto que, diz ele, tal doutrina nunca foi condenada pelo magistério extraordinário e solene da Igreja. Ora essa proposição não corresponde à verdade. Daí a necessidade de um esclarecimento a propósito.
1. Magistério da Igreja
O Senhor Jesus pregou o Evangelho para que fosse transmitido a todos os povos; quando se despediu dos Apóstolos, enviou-os a anunciar a Boa-Nova e garantiu-lhes a sua assistência infalível até o fim dos tempos: cf. Mt 28,18-20. Esta assistência infalível, bem como a do Espírito Santo prometido (cf. Jo 14,26; 16,13-15), asseguram à Igreja a fidelidade ao depósito da Revelação, de modo que esta não seja deturpada com o passar do tempo. É necessário que as verdades da fé sejam conservadas e transmitidas incólumes. O povo de Deus já não seria povo de Deus se acreditasse em algo diverso daquilo que foi transmitido por Cristo aos Apóstolos. Por isto a Igreja, como tal, é infalível em matéria de fé e de Moral, como “coluna e sustentáculo da verdade” (1Tm 3,15).
Esta infalibilidade da Igreja se exerce
a) por seu magistério ordinário: os Bispos, unidos ao Papa, ensinam com unanimidade;
b) por seu magistério extraordinário, que se exprime por:
– definições solenes de um Concílio Ecumênico ou Geral; ou por
– definições papais ex cathedra.
O magistério ordinário é decisivo desde que ensine com a intenção de afirmar decisoriamente alguma verdade como pertencente ao patrimônio da fé e da Moral católica. Ora a reencarnação é unanimemente rejeitada pelo magistério ordinário como contrária à fé católica, que professa a ressurreição. Sempre o magistério a recusou, como se dirá melhor no segundo subtítulo deste artigo.
O magistério extraordinário também é decisivo desde que se manifeste com caráter decisório. Para que alguma proposição pertença à fé católica, não é necessário que seja definida em termos extraordinários ou solenes pelo magistério da Igreja. O magistério extraordinário é reservado para casos de controvérsia teológica ou, mais raramente, para outras ocasiões.
Eis o que a respeito escreve o Concílio do Vaticano II:
“A infalibilidade da qual quis o Divino Redentor estivesse sua Igreja dotada ao definir doutrina da fé e de Moral, tem a mesma extensão que o depósito da Revelação Divina, que deve ser santamente guardado e fielmente exposto.
Tal é a infalibilidade de que goza o Romano Pontífice, o Chefe do colegiado e Mestre supremo de todos os fiéis que confirma seus irmãos na fé (cf. Lc 22, 32), quando proclama uma doutrina sobre a fé e os costumes. Esta é a razão por que se diz que suas definições são irreformáveis por si mesmas e não em virtude do consentimento da Igreja, pois foram proferidas com a assistência do Espírito Santo a ele prometido na pessoa do Bem-aventurado Pedro. E por isto não precisam da aprovação de ninguém nem admitem apelação a outro tribunal. Pois neste caso o Romano Pontífice não se pronuncia como pessoa particular, mas expõe ou defende a doutrina da fé católica como Mestre Supremo da Igreja inteira, no qual de modo especial reside o carisma da infalibilidade da própria Igreja.
A infalibilidade prometida à Igreja reside também no corpo episcopal, quando, com o sucessor de Pedro, exerce o supremo magistério.
A tais definições nunca pode faltar o assentimento da Igreja, devido à ação do mesmo Espírito Santo, pela qual toda a grei de Cristo se conserva e progride na unidade da fé.
Quando ou o Romano Pontífice ou o corpo dos Bispos com ele definem uma proposição, enunciam-na segundo a própria Revelação, à qual todos devem conformar-se e ater-se. Esta Revelação, quer escrita, quer comunicada através da legítima sucessão dos Bispos e especialmente do próprio Romano Pontífice, é integralmente transmitida e intactamente conservada na Igreja e é fielmente exposta à luz do Espírito da verdade. O Romano Pontífice e os Bispos, cada qual na medida dos seus deveres e conforme a gravidade da matéria, esforçam-se cuidadosamente usando meios aptos para investigar exatamente e enunciar convenientemente esta Revelação. Mas não reconhecem alguma nova revelação pública como pertencente ao divino depósito da fé” (Constituição Lumen Gentium nº25).
Vejamos agora como a Escritura e o magistério da Igreja consideram a doutrina da reencarnação.
2. A Reencarnação e o Cristianismo
2.1. A Reencarnação nos Evangelhos
Os escritos do Novo Testamento estão intimamente associados ao pensamento judaico pré-cristão. Ora este não admitia a reencarnação das almas. Sendo esta doutrina professada por filósofos gregos, os judeus se fecharam a ela, pois eram infensos a qualquer tipo de sincretismo religioso. – Foi nesse ambiente que Jesus pregou o seu Evangelho.
Feita esta observação, passemos ao exame sucinto dos textos bíblicos geralmente citados em favor da reencarnação.
2.1.1. João Batista e Elias
Mt 17, 10-13: Os judeus julgavam que Elias não morrera, mas fora arrebatado aos céus (cf. 2Rs 2, 11) e, por isto, voltaria à terra para revelar e ungir o Messias. Ora, nos tempos de Cristo, politicamente agitados, o profeta Elias era esperado em Israel com particular insistência. Pois bem; Jesus respondeu que João Batista fizera as vezes de Elias por reproduzir as atitudes fortes e destemidas do profeta (cf. Lc 1, 17). O próprio João Batista negou peremptoriamente ser Elias, quando os enviados dos judeus o interrogaram (cf. Jo 1,21). À luz destas ponderações, entenda-se também o texto de Mt 11,14s.
Mais: no momento da Transfiguração apareceram a Jesus Moisés e Elias (cf. Mt 17,3). Ora, naquele tempo João já fora executado por Herodes ou já morrera. Por conseguinte, deveria aparecer a Jesus João Batista e não Elias, conforme a doutrina da reencarnação, pois esta ensina que, quando o espírito se materializa, sempre se apresenta na forma da última encarnação. – Donde se vê que João Batista não era a reencarnação de Elias.
2.1.2. Jesus e Nicodemos
Jo 3, 3: O advérbio grego ánothen, que por vezes é traduzido por de novo, reaparece em Mt 26, 51, para significar que, por ocasião da morte de Jesus, o véu do Templo se cindiu ánothen, isto é, de cima a baixo (não de novo).
Nicodemos não entendera as palavras de Jesus; fiel aos ensinamentos judaicos, julgava impossível a reencarnação; “Como pode um homem nascer sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer?” (Jo 3,4). Jesus logo dissipou a dúvida, explicando que não se tratava de renascer no sentido biológico, mas, sim, de nascer de outro modo, ou seja, pela água e pelo Espírito: “Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5). Positivamente, Jesus tinha em vista o Batismo, que torna o homem filho de Deus.
2.1.3. Jesus e o cego de nascença
Jo 9, 1s: Os judeus julgavam que todo mal é conseqüência de um pecado. Por conseguinte, no caso de um cego de nascença, pensariam num pecado dos pais (que, segundo a mentalidade do clã; seria punido sobre os filhos), ou num pecado do próprio cego; esta última hipótese deveria parecer-lhes absurda, pois sabiam que as crianças nascem sem ter cometido previamente nem bem nem mal (cf. Rm 9, 11). Assim perplexos, lançaram suas interrogações a Jesus, sem se dar ao trabalho de procurar terceira solução para o caso. Ora, Jesus respondeu sem abordar o aspecto especulativo da questão, elucidando diretamente a situação concreta que lhe apresentavam: nem uma hipótese nem outra, mas um desígnio superior de Deus (“… para se manifestarem nele, cego, as obras de Deus”).
De resto, a Escritura é diretamente contrária à reencarnação quando, por exemplo, afirma: “Foi estabelecido, para os homens, morrer uma só vez; depois do quê, há o julgamento” (Hb 9, 27). Notemos também as palavras de Jesus ao bom ladrão: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Os textos muito enfáticos em que Jesus e os Apóstolos anunciam a ressurreição dos mortos, o céu e o inferno, são outros tantos testemunhos que se opõem à reencarnação: vejam-se Mt 5, 22; 13, 50; 22, 23-33. Mc 3, 29; 9, 43-48; Jo 5, 28s; 6, 54; 1Cor 15, 13-19.
2.2. A Reencarnação na Tradição da Igreja
Examinemos os testemunhos dos primeiros séculos do Cristianismo.
Clemente de Alexandria (+215) julga ser a doutrina da reencarnação arbitrária, porque não se baseia nem nas sugestões da nossa consciência nem na fé católica; lembra que a Igreja não a professa, mas, sim, os hereges, especialmente Basílides e os Marcionistas. Cf. Eclogae ex Scripturis Propheticis XVII PG 9, 706; Excerpta ex Scriptis Theodoti XXVIII, PG 9, 674; Stromata III, 3; IV, 12 PG 1114s. 1290s.
S. Irineu (+202) observa que em nossa memória não se encontra vestígio de pretensas existências anteriores (Adv. Haer II, 33, PG 7, 830s); em nome da fé, opõe o dogma da ressurreição dos corpos: nosso Deus é bastante poderoso para restituir a cada alma o seu próprio corpo (ib. II 33, PG 7, 833).
Outros autores antigos se poderiam citar a propor semelhantes ponderações. O mais importante, porém, é Orígenes de Alexandria (+254). Este propôs, à guisa de hipótese, a preexistência das almas: todos os espíritos teriam sido criados desde toda a eternidade e dotados da mesma perfeição inicial; muitos, porém, terão abusado da sua liberdade e pecado. Tal pecado haverá sido, para Deus, a ocasião de criar um mundo material, a fim de servir de lugar de castigo e purificação. Conforme a falta cometida, cada espírito teve que tomar, em punição, um corpo mais ou menos grosseiro. Os que não se purificassem devidamente nesta vida, deveriam passar, depois da morte, para “um lugar de fogo”. Mas finalmente todos seriam reintegrados na suprema felicidade com Deus; o inferno não seria eterno.
Notemos que estas idéias foram propostas com reservas e a título de hipóteses (cf. Peri Archon; PG 11,224). Todavia os discípulos de Orígenes, chamados origenistas, eram monges do Egito, da Palestina e da Síria, que se beneficiavam dos escritos ascéticos e místicos do mestre, mas eram pouco versados em teologia; por conseguinte, não tinham critérios para distinguir entre as verdades de fé e as proposições hipotéticas de Orígenes. Os origenistas, portanto, nos séculos IV/VI professaram como artigos de fé não só a preexistência das almas e a restauração final de todos na felicidade inicial, mas também a reencarnação. Contrariavam assim o pensamento do próprio Orígenes, que era avesso à reencarnação, tida por ele como “fábula inepta e ímpia” (In Rom. V. PG 14, 1015).
A tese da reencarnação, desde que começou a ser sustentada pelos origenistas, encontrou decididos oponentes entre os escritores cristãos mesmos, que a tinham como contrária à fé. Um dos testemunhos mais claros é o de Enéias de Gaza (t 518), autor do “Diálogo sobre a imortalidade da alma e a ressurreição”, em que se lê o seguinte raciocínio:
“Quando castigo o meu filho ou o meu servo, antes de lhe infligir a punição, repito-lhe várias vezes o motivo pelo qual o castigo, e recomendo-lhe que não o esqueça para que não recaia na mesma falta. Sendo assim, Deus, que estipula… os supremos castigos, não haveria de esclarecer os culpados a respeito do motivo pelo qual Ele os castiga? Haveria de lhes subtrair a recordação de suas faltas, dando-lhes ao mesmo tempo a experimentar muito vivamente as suas penas? Para que serviria o castigo se não fosse acompanhado da recordação da culpa? Só contribuiria para irritar o réu e levá-lo à demência. Uma tal vítima não teria o direito de acusar o seu juiz por ser punida sem ter consciência de haver cometido alguma falta?” (ed. Migne gr, t. LXXXV 871).
As doutrinas dos origenistas chamaram a atenção das autoridades da Igreja. Em 543, o Patriarca Menas de Constantinopla redigiu e promulgou quinze anátemas contra Orígenes, dos quais os quatro primeiros nos interessam diretamente:
“1. Se alguém crer na fabulosa preexistência das almas e na repudiável reabilitação das mesmas (que é geralmente associada àquela), seja anátema.
2. Se alguém disser que os espíritos racionais foram todos criados independentemente da matéria e alheios ao corpo, e que vários deles rejeitaram a visão de Deus, entregando-se a atos ilícitos, cada qual seguindo suas más inclinações, de modo que foram unidos a corpos, uns mais, outros menos perfeitos, seja anátema.
3. Se alguém disser que o sol, a lua e as estrelas pertencem ao conjunto dos seres racionais e que se tornaram o que eles hoje são por se voltarem para o mal, seja anátema.
4. Se alguém disser que os seres racionais nos quais o amor a Deus se arrefeceu, se ocultaram dentro de corpos grosseiros como são os nossos, e foram em conseqüência chamados homens, ao passo que aqueles que atingiram o último grau do mal tiveram, como partilha, corpos frios e tenebrosos, tornando-se o que chamamos demônios e espíritos maus, seja anátema”.
O Papa Vigílio e os demais Patriarcas deram a sua aprovação a esses artigos. Concluímos, pois, que a doutrina da reencarnação nunca foi professada oficialmente pela Igreja Católica (contradiz ao Credo cristão); todavia após Orígenes (século III) foi professada por grupos particulares de monges orientais, pouco iniciados em teologia; em 543 foi solenemente rejeitada pelas autoridades da Igreja. A mesma condenação ocorreu nos Concílios ecumênicos de Lião (1274) e Florença (1439), que ensinam a imediata passagem desta vida para a sorte definitiva no além (DS 857 [464] e 1306 [693]). O Concilio Vaticano II, por sua vez, fala do “único curso da nossa vida terrestre (Hb 9, 27)”, tencionando assim opor-se à teoria da migração das almas; cf. Lumen Gentium n.º 48.