Igreja, única: a salvação fora da Igreja visível

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 438/1998)

Em síntese: Todos os homens, por mais diferentes que sejam, têm em comum: 1) ter sido criados todos à imagem e semelhança de Deus; 2) remidos todos pelo sangue de Cristo; 3) chamados todos à mesma bem-aventurança final. Sendo assim, Deus não pode deixar de se fazer pre­sente a todos e a qualquer um no decorrer desta vida. Ele interpela cada qual pela voz do Evangelho ou pela voz da consciência. Aqueles que, sem culpa própria, ignoram Cristo e sua Igreja, mas de boa fé e candida­mente procuram seguir os ditames de sua consciência reta e bem forma­da, sacrificando-se para seguir o que eles julgam ser a Verdade e o Bem, estão seguindo a Deus e poderão chegar à pátria celeste preparada para todos os homens sinceros e retos. Deus não pede contas a ninguém daquilo que o próprio Deus não lhe confiou.

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O presente artigo se voltará para a delicada questão da salvação fora da Igreja visível, considerando, de modo especial, a ação do Espírito Santo em tal caso. Impõe-se logo uma observação básica.

1. Todos iguais em três planos

É forçoso reconhecer que todos os homens, por mais diferentes que sejam pela cultura e por suas crenças religiosas, são iguais entre si em três planos:

1) Todos trazem em si a imagem e semelhança de Deus, pois todos são dotados de inteligência e vontade e, por isto, aspiram à Verda­de, ao Bem, ao Absoluto, ao Infinito… Sabiamente registrava S. Agosti­nho: “Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração en­quanto não repousa em Ti” (Confissões). O sinete do Criador está assim gravado no íntimo de todo ser humano.

2) Todos foram remidos pelo sangue de Cristo, embora muitos não conheçam Jesus Cristo. O Sínodo dos Bispos da Ásia, realizado em Roma nos meses de abril e maio de 1998, reconheceu a dificuldade de o anunciar aos povos de tradições religiosas muito antigas, como são os hinduístas, os brâmanes, os budistas, os confucionistas, os xintoístas…; verificaram os Bispos que mesmo na Ásia se pode apregoar o Evangelho desde que se mostre que o Cristianismo não é uma religião meramente ocidental, mas responde aos anseios mais espontâneos do ser humano: Jesus na Ásia é o Compassivo, o Iluminado, o Purificador, o Mestre da Sabedoria, o Amigo dos Pobres.

3) Todos são chamados à mesma bem-aventurança final ou à visão de Deus face-a-face, pois todo ser humano é capax Dei, capaz de apreendera Deus (Catecismo da Igreja Católica n2 27); ver Gaudium et Spes n2 19 § 1.

2. Deus presente a todos os homens

Se todos os homens são tão marcados por Deus, compreende-se que Deus se lhes torna presente, de modo que o possam de algum modo perceber.

O Papa Paulo VI, numa alocução de 17/05/1972, o insinua. Cita Socrates, que se dizia inspirado por um gênio (daimon), e Gandhi, que afirmava obedecer a uma still small voice, e acrescenta:

“Sem recorrer aos exemplos extraordinários, cada homem verda­deiro tem, dentro de si, uma fonte própria, intuitiva e normativa”.

A afirmação é um tanto vaga. Importante, porém, é que ela se refe­re a todos os homens, cristãos e não cristãos.

O Concílio do Vaticano II explicita tal pensamento, afirmando:

“Na intimidade da consciência, o homem descobre uma lei. Ele não a dá a si mesmo. Mas a ela deve obedecer. Chamando-o sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal, no momento oportuno a voz desta lei lhe soa nos ouvidos do coração: faze isto, evita aquilo. De fato o homem tem uma lei escrita por Deus em seu coração. Obedecer a ela é a própria dignidade do homem, que será julgado de acordo com esta lei. A consci­ência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem, onde ele está sozi­nho com Deus e onde ressoa sua voz. Pela consciência se descobre, de modo admirável, aquela lei que se cumpre no amor de Deus e do próxi­mo” (Const. Gaudium et Spes n2 16).

É digna de especial atenção a referência à consciência como sacrário em que o homem se encontra não com um gênio do além, mas com o próprio Deus, que indica à criatura a via de retorno para o Pai, insuflando-lhe: “Pratica o bem, evita o mal”. No mais íntimo de si todo homem ouve essa voz delicada do Criador.

É claro que tal realidade, com mais razão ainda, se verifica no cris­tão, que é feito templo da Ssma. Trindade desde o seu Batismo; cf. Rm 8,15; GI 4,4. O Cristianismo é a resposta, por excelência, às aspirações de todo homem, como insinua Tertuliano (+ 220 aproximadamente) ao exclamar: “Ó testemunho da alma naturalmente cristã!” (Apologeticum 17).

Por ser templo do Espírito Santo (1 Cor 6,19), o cristão tem mais do que uma little small voice a lhe falar; tem o Mestre interior, que é o próprio Espírito Santo, o qual lhe ensina o sentido profundo das palavras de Deus que ele capta com os ouvidos. É Santo Agostinho quem o diz:

“Vede já, irmãos, este grande mistério: o som de nossas palavras fere o ouvido: o Mestre, porém, está dentro. Não penseis que alguém aprenda alguma coisa do homem. Podemos chamar a atenção com o ruído de nossa voz; mas, se no nosso interior não estiver aquele que nos ensina, será vã nossa pregação. Irmãos, quereis dar-vos conta do que vos digo? Por acaso não escutais todos este sermão? Mas quantos sai­rão daqui sem se instruir! Pelo que toca a mim, falei a todos; mas aqueles a quem não fala aquela Unção [Agostinho se referia a 1Jo 2,20.27], a quem o Espírito Santo não ensina interiormente, saem daqui sem
instru­ção. O magistério externo consiste em certas ajudas e avisos. Mas quem instrui os corações, tem sua cátedra no céu. Logo, é o Mestre interior quem ensina. Onde não estiver sua inspiração nem sua unção, inutilmen­te soarão no exterior as palavras”.

Visto que Deus se faz presente a todo ser humano, abordemos agora a questão:

3. A salvação fora da Igreja Católica

O Concílio do Vaticano II considerou o problema, recolhendo os dados da teologia dos últimos séculos. Assim se exprime a Constituição Lumen Gentium n° 16:

“O Salvador quer que todos os homens se salvem (cf. 1 Tm 2,4). Portanto aqueles que sem culpa ignoram o Evangelho de Cristo e sua Igreja, mas buscam Deus de coração sincero e tentam, sob o influxo da graça, cumprir por obras a sua vontade conhecida através dos ditames da consciência, podem conseguir a salvação eterna. E a Providência Di­vina não nega os subsídios necessários à salvação àqueles que sem culpa ainda não chegaram ao conhecimento expresso de Deus e se es­forçam, não sem a divina graça, por levar uma vida reta”.

A Constituição Gaudium et Spes n° 22 volta ao assunto:

“Isto (a participação no mistério pascal) vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade, em cujos corações a graça opera de maneira invisível. Com efeito, tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibi­lidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal”

Como se vê, o Concílio deixa claro que não é o esforço do “bom pagão” que lhe vale a salvação, mas é a graça de Deus oferecida a todos que os leva a mobilizar-se em demanda do Bem. Nenhum ser humano é privado dos subsídios necessários à salvação, sendo que Deus não pede a um não cristão contas da fidelidade ao Evangelho, que ele ignora.

Ainda mais recentemente, na encíclica sobre a Missão do Reden­tor, o Papa João Paulo II professou e desenvolveu essa concepção oti­mista:

“A universalidade da salvação em Cristo não significa que ela se destina apenas àqueles que, de maneira explícita, crêem em Cristo e entraram na Igreja. Se é destinada a todos, a salvação deve ser posta concretamente à disposição de todos. É evidente, porém, que, hoje como no passado, muitos homens não têm a possibilidade de conhecer ou acei­tar a revelação do Evangelho, e de entrar na Igreja. Vivem em condições socioculturais que o não permitem, e freqüentemente foram educados noutras tradições religiosas. Para eles, a salvação de Cristo toma-se aces­sível em virtude de uma graça que, embora dotada de uma misteriosa rela­ção com a Igreja, todavia não os introduz formalmente nela, mas ilumina convenientemente a sua situação interior e ambiental. Esta graça pro­vém de Cristo, é fruto do seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito San­to: ela permite a cada um alcançar a salvação, com a sua livre colaboração.

“Por isso o Concílio, após afirmar a dimensão central do Mistério Pascal, diz: `Isto não vale apenas para aqueles que crêem em Cristo, mas para todos os homens de boa vontade, no coração dos quais opera invisivelmente a graça. Na verdade, se Cristo morreu por todos e a voca­ção última do homem é realmente uma só, isto é, a divina, nós devemos acreditar que o Espírito Santo oferece a todos, de um modo que só Deus conhece, a possibilidade de serem associados ao Mistério Pascal” (n° 10).

Tal concepção está longe de induzir ao relativismo, pois o Concílio afirma a singularidade da Igreja Católica fundada por Cristo e entregue ao pastoreio de Pedro e seus sucessores; cf. Lumen Gentium n° 8; Unitatis Redintegratio n° 8.

A encíclica Ut unum sint de João Paulo II aplica estas idéias às comunidades cristãs não católicas, reconhecendo nelas valores que de­vem ser levados à sua plenitude:

“10. O Concílio diz que ‘a Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católi­ca, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele’, e contemporaneamente reconhece que ‘fora da sua comunidade vi­sível, se encontram muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica’.

“’Por isso, as Igrejas e Comunidades separadas, embora creiamos que tenham defeitos, de forma alguma estão despojadas de sentido e de significação no mistério da salvação. Pois o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como de meios de salvação cuja virtude deriva da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica’.

“11. Desse modo, a Igreja Católica afirma que, ao longo dos dois mil anos da sua história, foi conservada na unidade com todos os bens que Deus quer doar à sua Igreja, e isso apesar das crises, por vezes graves, que a abalaram, as faltas de fidelidade de alguns dos seus minis­tros, e os erros que diariamente investem os seus membros. A Igreja Católica sabe que, graças ao apoio que lhe vem do Espírito Santo, as fraquezas, as mediocridades, os pecados, e às vezes as traições de al­guns dos seus filhos, não podem destruir aquilo que Deus nela infundiu tendo em vista o seu desígnio de graça. E até ‘as portas do inferno nada poderão contra ela’ (Mt 16,18). Contudo, a Igreja Católica não esquece que, no seu seio, muitos eclipsam o desígnio de Deus. Ao evocar a divi­são dos cristãos, o Decreto sobre o ecumenismo não ignora ‘a culpa dos homens dum e doutro lado, reconhecendo que a responsabilidade não pode ser atribuída somente aos ‘outros’ Por graça de Deus, porém, não foi destruído o que pertence à estrutura da Igreja de Cristo e nem mesmo aquela comu­nhão que permanece com as outras Igrejas e Comunidades eclesiais.

“Com efeito, os elementos de santificação e de verdade presentes nas outras Comunidades cristãs, em grau variável duma para outra, cons­tituem a base objetiva da comunhão, ainda imperfeita, que existe entre elas e a Igreja Católica.

“Na medida em que tais elementos se encontram nas outras Comu­nidades cristãs, a única Igreja de Cristo tem nelas uma presença operante. Por esse motivo, o Concílio do Vaticano II fala de certa comunhão, embo­ra imperfeita. A Constituição Lumen Gentium ressalta que a Igreja Cató­lica ‘vê-se unida por muitos títulos’ a estas Comunidades, por certa união verdadeira no Espírito Santo”.

No Brasil (como em outros países latino-americanos) o protestan­tismo se acha assaz matizado: ao lado de denominações tradicionais, encontra-se o pentecostalismo, muito marcado pelas emoções subjeti­vas. Pode-se crer que muitos membros de tais comunidades estejam de boa fé ou candidamente fora da Igreja Católica; estão compreendidos na categoria de não católicos de que tratam Lumen Gentium 16 e Gaudium et Spes 22. Verifica-se, porém, que algumas recentes denominações pentecostais são ferrenhamente agressivas à Igreja Católica no intuito de a destruir (caso isto fosse possível); recorrem a falsas alegações ins­piradas por preconceitos cegos. Isto suscita a pergunta: o Espírito Santo opera também naqueles que assim procedem? Não se vê como dar res­posta positiva a esta questão; diz o Senhor Jesus que a mentira tem por pai o próprio Satanás (cf. Jo 8,44). Queira o Espírito Santo iluminar-lhes a mente e convertê-los à Verdade e ao Amor!