Marxismo: análise marxista e cristianismo

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 258/1981)


Em síntese: O Pe. Pedro Arrupe S.J., Preposto Geral da Com­panhia de Jesus, publicou uma carta em que analisa as propaladas possi­bilidades de aproveitamento da análise marxista numa perspectiva de es­tudos cristã. Conclui pela negativa, visto que é praticamente impossível adotar o método de análise marxista sem aceitar simultaneamente os princípios filosóficos ou o materialismo histórico e as conseqüências prá­ticas (a luta de classes, por exemplo) que tal método implica. O autor da carta, em última instância, faz eco ao Documento de Puebla e à posição do Papa João Paulo II em discurso proferido ao CELAM no Rio de Janeiro.

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Comentário: Com a data de 8/12/1980, o Padre Pedro Arrupe S.J., Preposto Geral da Companhia de Jesus, dirigiu aos Provinciais da América Latina uma carta, que foi outros­sim enviada, para conhecimento de causa, aos demais Provin­ciais da Companhia. Versava sobre análise marxista e Cris­tianismo. O documento vinha a ser uma resposta a interro­gações levantadas pelos próprios Provinciais da Companhia; resultava não só de reflexão pessoal do autor, mas também de meticulosas consultas a peritos sobre o assunto; em con­seqüência de tais consultas, o Pe. Arrupe recebeu de especia­listas cerca de setenta relatórios e estudos, que lhe permiti­ram elaborar um documento sólido e válido.

Visto que tal texto se reveste de grande atualidade, transcreveremos abaixo o respectivo teor; ao que se seguirão síntese e breve comentário do mesmo.

I. O TEXTO DA CARTA

«01. No ano passado chegou-me o vosso pedido para que vos ajudasse a aprofundar o problema da «análise marxista», so­bre a qual os Bispos da América latina acabavam de dar impor­tantes instruções (Documento de Puebla, n° 544-545). Após ter rea­lizado ampla consulta sobre o tema, respondo agora a essa peti­ção. Proponho-me, também, a enviar cópias desta carta aos demais Provinciais da Companhia, pois a mesma poderá ser igualmente útil a vários deles.

02. Não me referirei aqui a todo o problema das relações entre marxismo e Cristianismo, que é muito mais vasto e que tem sido tratado em numerosos documentos pontifícios e de diversas Conferências Episcopais. O assunto de que se trata agora é mais específico e limitado: pode um cristão, um jesuíta, utilizar a «aná­lise marxista», distinguindo-a da filosofia ou ideologia marxista, e também da práxis ou, pelo menos, da perspectiva global que essa análise implica?

03. Diante desta pergunta, devo ressaltar, em primeiro lugar, que nem todos dão o mesmo sentido às palavras «análise mar­xista». Freqüentemente, pois, é necessário pedir à pessoa que as emprega, uma explicação sobre o significado preciso que lhes atri­bui. Por outro lado, este problema envolve aspectos sociológicos e filosóficos, que não são diretamente da minha competência como Superior Geral. No entanto, levando em consideração o modo como geralmente se coloca hoje a pergunta, acho conveniente dar algu­mas orientações e indicações necessárias para o bom governo do corpo apostólico da Companhia.

04. Tenho consciência de que nem todos os jesuítas verão refletidas suas inquietações nesta pergunta: pode um cristão fazer sua a «análise marxista»? É certo, porém, que tal pergunta pode ser ouvida com freqüência em vossas Províncias. Há alguns – rara­mente na América Latina, com mais freqüência em países da Eu­ropa – que se acham submersos, por seu apostolado, em um ambiente de convicção e, às vezes, de longa tradição marxista. Há, por exemplo, sacerdotes operários que, por inculturação e por solidariedade, sentem que não podem deixar de compartilhar pontos de vista que são comuns entre seus companheiros de trabalho. Só depois de se deparar com essa situação começam a fazer um dis­cernimento de fé, que consideram, por outro lado, muito importante. Notam também que o comportamento concreto dos trabalhadores marxistas está freqüentemente muito distante do marxismo teórico, e põem de sobreaviso contra uma supervalorização dos aspectos intelectuais do problema. Parecem-me muito úteis estas observações. No entanto, é necessário notar que, mesmo num discernimento de fé mais intuitivo, os problemas atingem também este nível de refle­xão no qual desejo tratá-los agora. Portanto, as orientações que se seguem são importantes também para estes casos.

5. Em primeiro lugar, parece-me que, em vista da análise que fazemos da sociedade, podemos aceitar certo número de pontos de vista metodológicos que surgem mais ou menos da análise mar­xista, sob a condição de não lhes darmos caráter exclusivo. Por exemplo, a atenção para os fatores econômicos, para as estruturas de propriedade, para os interesses econômicos que podem mover alguns grupos ou outros; a sensibilidade à exploração de que são vítimas classes sociais inteiras; a atenção para o lugar que ocupam as lutas de classes na história (de pelo menos numerosas socieda­des); a atenção para as ideologias que podem servir de disfarce a certos interesses e mesmo a injustiças.

06. Entretanto, na prática, a adoção da «análise marxista» raramente significa adotar um método ou um «enfoque»; significa geralmente aceitar também o próprio conteúdo das explicações dadas por Marx sobre a realidade social de seu tempo, a fim de aplicá-las à realidade de nosso tempo. Assim, impõe-se aqui uma primeira observação: em matéria de análise social, não deve haver nenhum a priori; cabem as hipóteses e as teorias, mas tudo deve ser verifi­cado e nada se pode pressupor como definitivamente válido. Entre­tanto, dá-se o caso de se adotar a análise marxista ou alguns de seus elementos como um a priori que não seria necessário verificar, mas, quando muito, ilustrar. Com freqüência confundem-se abusiva­mente estes elementos com a opção evangélica em favor dos pobres, embora não derivem diretamente dela. Neste campo da interpreta­ção sociológica e econômica temos que ser muito cuidadosos em verificar as coisas, e exemplares no esforço de objetividade.

07. Chegamos agora ao núcleo da questão: pode-se aceitar o conjunto das explicações que constituem a análise social marxista, sem aderir à filosofia, à ideologia e à política marxista? Considere­mos alguns dos pontos mais importantes a esse respeito.

08. Um bom número de cristãos que simpatizam com a aná­lise marxista pensam que esta, mesmo quando não implica no «ma­terialismo dialético» nem, com mais razão, no ateísmo, inclui, no entanto, o «materialismo histórico». Mais ainda: segundo alguns, identifica-se com ele. Entendem, portanto, que todo o social (inclu­sive o político, o cultural, o religioso e a consciência) é como que determinado pelo econômico. Deve-se confessar que os termos assim empregados não ficam, nem no próprio marxismo, bem definidos, e são suscetíveis de diversas interpretações. Porém, com muita freqüência, o materialismo histórico é compreendido num sentido redutor: a política, a cultura, a religião, perdem sua própria consistência, e já não se mostram senão como realidades que dependem totalmente do que acontece na esfera das relações econômicas. Ora esta ma­neira de ver as coisas é prejudicial para a fé crista; pelo menos, para o conceito cristão do homem e para a ética cristã. Portanto, embora seja verdade que devemos levar muito em consideração os fatores econômicos em qualquer explicação da realidade social, temos que evitar uma análise que suponha a idéia de que o eco­nômico, nesse sentido redutor, decide todo o resto.

09. 0 materialismo histórico carrega consigo, além disto, uma crítica da religião e do cristianismo, da qual geralmente a análise marxista não se liberta. Assim sendo, essa crítica pode abrir nossos olhos em relação aos casos em que se abusa da religião para en­cobrir situações sociais que não se podem defender. Mas, se racio­cinamos como se tudo dependesse, em última análise, das relações de produção, como se esta fosse de fato a realidade fundamental e determinante, o conteúdo da religião e do cristianismo logo se relativiza e se reduz. A fé no Deus Criador e em Jesus Cristo Sal­vador se enfraquece ou, pelo menos, aparece como algo de pouca utilidade. O sentido do gratuito se desvanece diante do sentido do útil. A esperança cristã tende a se converter em algo irreal.

10. As vezes há quem pretenda distinguir a própria fé em Jesus Cristo, que desejam guardar intacta, de suas diversas aplica­ções doutrinais e sociais, que não resistem aos ataques dessa crí­tica. Mas existe, então, o perigo de uma crítica radical contra a Igreja, que vai muito além da sã correção fraterna na “Ecclesia semper reformanda”. Algumas vezes, tender-se-á, inclusive, a jul­gá-la a partir de fora, e até a não reconhecê-la como o lugar da própria fé. Assim, não é raro que a adoção da análise marxista conduza a julgamentos extremamente severos e até injustos em re­lação à Igreja.

11 . Mesmo nos casos em que a análise social marxista não é entendida como algo que implica no materialismo histórico em sentido pleno, ela sempre supõe como elemento essencial uma teoria radical do conflito e da luta de classes. Pode-se dizer, inclusive, que é uma análise em termos de luta de classes. Assim, mesmo quando temos que reconhecer a existência de antagonismos e de luta de classes com inteiro realismo (e o cristão sabe que existe uma certa relação entre estes males e o pecado), deve-se evitar, no entanto, uma generalização indevida. Nunca foi demonstrado que toda a história humana, passada e presente, se possa reduzir à luta, e muito menos à luta de classes no sentido estrito da palavra. Não se compreende a realidade social apenas por meio da dialética do senhor e do escravo; mas tem havido, e ainda há, muitos outros impulsos no história humana (de aliança, de paz, de amor); há outras forças profundas que a inspiram.

12. Ademais este é um ponto em que a análise marxista freqüentemente não se limita a ser uma simples análise, mas esten­de-se a um programa de ação e a uma estratégia. Reconhecer que existe a luta de classes não implica logicamente que a única ma­neira de acabar com ela seja utilizar a própria luta, a do classe operária contra a classe burguesa. Entretanto, é raro que aqueles que adotam a análise marxista não assumam também esta estra­tégia. E esta não pode ser bem compreendida sem o messianismo proletário que faz parte da ideologia de Marx, e que já fazia parte da filosofia que ele havia delineado mesmo antes de se dedicar às suas análises econômicas sistemáticas. Por outro lado, mesmo quando o cristianismo reconhece a legitimidade de certas lutas, e não exclui a revolução em situações extremas de tirania que não admitem outro remédio [1], não pode admitir que a maneira pri­vilegiada de acabar com as lutas seja a própria luta. O cristianismo tentará sempre dar prioridade a outros meios para a transformação da sociedade; recorrendo à persuasão, ao testemunho, à reconci­liação; nunca perdendo a esperança da conversão; somente em última instância o Cristianismo admitirá o recurso à luta propria­mente dita (sobretudo se esta implica em violência) para se defen­der contra a injustiça. Trata-se de toda uma filosofia – e, para nós, de uma teologia – da ação.

13. Em suma, embora a análise marxista não inclua direta­mente a adesão à filosofia marxista em todo seu conjunto – e, menos ainda, ao «materialismo dialético» como tal -, no entanto, tal como é ordinariamente entendida, implica de fato num con­ceito da história humana que não concorda com a visão cristã do homem e da sociedade, e desemboca em estratégias que fazem perigar os valores e as atitudes cristãs. As conseqüências disto não são sempre desastrosas, ao menos não sempre desastrosas de ime­diato, embora muitas vezes tenham sido daninhas. O aspecto moral é particularmente importante nesta matéria; alguns cristãos que ten­taram seguir durante algum tempo a análise e a prática marxista, confessaram ter sido induzidos a aceitar facilmente qualquer meio para chegar a seus fins. Por isto até hoje se corrobora pelos fatos o que escrevia Paulo VI na Octogesima Adveniens (n° 34): «Seria ilusório e perigoso… aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia». Separar uma da outra é mais difícil do que, às vezes, se supõe.

14. Neste contexto, os Bispos da América Latina, reunidos em Puebla, fizeram notar que uma reflexão teológica feita a partir de uma práxis apoiada na análise marxista corre o risco de desem­bocar na «total politização da existência cristã», na «dissolução da linguagem da fé na linguagem das ciências sociais» e no «esvazia­mento da dimensão transcendental da salvação cristã» (Puebla, n° 545). Este risco tríplice pode aparecer, de fato, na linha das observações que acabo de fazer.

15. Por isto, a adoção não só de alguns elementos ou de alguns enfoques metodológicos, mas da análise marxista em seu conjunto, não é aceitável para nós. Mesmo que suponhamos que alguma pessoa, utilizando um instrumental muito preciso de distin­ções, possa ser estritamente capaz de falar de análise marxista, sem aceitar o materialismo histórico reducionista nem a teoria e a estra­tégia da luta de classes generalizada – seria isso ainda uma análise marxista? -, a maior parte dos homens, incluindo a maio­ria dos jesuítas, não é capaz de fazê-lo. Assim, existe um perigo prático real em difundir a idéia de que se pode facilmente reter a análise marxista, como algo distinto da filosofia, da ideologia e da práxis política. Tanto mais que, com algumas poucas exceções, os marxistas propriamente ditos rejeitam a separação entre a análise, por um lado, e a visão do mundo ou os princípios da ação marxista, por outro. Temos a responsabilidade de fazer este discernimento prático, assim como temos a responsabilidade de fazer o discerni­mento teórico. E é preciso também que demos aos jovens jesuítas em formação os instrumentos de estudo crítico e de reflexão cristã necessários para que percebam bem as dificuldades que a análise marxista comporta. Certamente durante o período de formação não se pode apresentar esta análise como o melhor meio de abordagem da realidade social.

16. Desejo mencionar, além disto, um problema sobre o qual gostaria de que nossos especialistas fizessem estudos mais profundos. Estou-me referindo ao problema das estruturas da propriedade (dos meios de produção, como se compreende), problema que está no âmago de tantos aspectos da análise marxista. Não há dúvida de que uma má distribuição da propriedade, não compensada por outros fatores, acarreta ou facilita a exploração descrita por Marx e denunciada também pela Igreja. Não obstante, não se costuma freqüentemente confundir a própria instituição da propriedade com sua má distribuição? É importante continuar estudando, com a ajuda da experiência, que tipo de distribuição dos direitos de propriedade, assim como de outros tipos de poder (político, sindical… ) per­mitiria realizar um mundo mais justo e mais pleno desenvolvimento das pessoas nos diferentes sistemas sociais. Longe de ignorar as contribuições do ensino social da Igreja neste campo concreto, in­cumbe-nos o dever de estudá-las a fundo, especificar suas exigências e contribuir para seu desenvolvimento.

17. Farei, finalmente, quatro indicações à guisa de conclusão. Em primeiro lugar, não obstante as reservas que se devem fazer em relação à análise marxista, devemos reconhecer e tentar com­preender as razões da atração que exerce sobre tantas pessoas. Os cristãos são fácil e justamente sensíveis ao projeto de libertar os homens das dominações e opressões a que estão submetidos, à promessa de fazer a verdade denunciando as ideologias que a ocultam, à proposta de suprimir as divisões sociais. Não deixemos crer que isto possa ser alcançado com meios demasiado simplistas ou mesmo contrários ao fim que almejamos; mas também não desen­corajemos ninguém na busca perseverante dessas metas, que têm afinidade direta com a caridade, característica decisiva do projeto cristão. Temos de ser, inclusive, compreensivos com o homem que sofre na própria carne injustiças sociais revoltantes.

18. Em segundo lugar, deve ficar bem claro que a análise marxista não é a única que esteja associada a pressupostos ideo­lógicos ou filosóficos, introduzidos sub-repticiamente. De modo par­ticular, as análises sociais que são praticadas habitualmente no mundo liberal, implicam uma visão materialista e individualista do mundo, que é também oposta aos valores e às atitudes cristas. Neste sentido, será que damos atenção suficiente aos livros de texto, por exemplo, que se usam em nossos colégios? Quando empregamos elementos de análise social, seja qual for sua origem, devemos sempre criticá-los e purificá-los, se quisermos permanecer fiéis ao Evangelho, para depois escolher aqueles que verdadeiramente aju­dem a compreender e descrever sem preconceitos a realidade. Nosso esforço deve ser guiado pelos critérios do Evangelho, e não por ideologias incompatíveis com ele.

19. Em terceiro lugar, devemo-nos manter sempre dispostos ao diálogo, no que concerne aos marxistas. Por outro lado, conforme o espírito da Gaudium et Spes (n° 21 § 6), tampouco devemos re­cusar colaborações concretas bem definidas, que o bem comum possa requerer [2]. Mas tenhamos sempre em consideração nosso papel próprio de sacerdotes e religiosos, e nunca atuemos como franco-atiradores em relação à comunidade cristã e aos que nela têm a última responsabilidade pastoral; tratemos de assegurar-nos de que qualquer colaboração nossa se dirija integralmente para atividades aceitáveis para um cristão. Em tudo isso temos o dever de conservar sempre nossa própria identidade, pois, pelo fato de aceitar alguns pontos de vista que são válidos, não nos podemos deixar arrastar para a aprovação da análise marxista em seu con­junto, e, sim, ser em tudo conseqüentes com a nossa fé e com os princípios de ação que ela supõe. Ademais procedamos de maneira a mostrar concretamente que o cristianismo é uma mensagem que traz aos homens uma riqueza muito superior à de qualquer conceito da análise marxista, por mais útil que seja.

20. Enfim, devemos também opor-nos com firmeza às tenta­tivas dos que gostariam de aproveitar as reservas que temos diante da análise marxista, para estimar menos ou até condenar como «marxismo» ou «comunismo» o compromisso com a justiça e com a causa dos pobres, a defesa que os explorados fazem de seus pró­prios direitos, as reivindicações justas. Não temos notado com fre­qüência formas de anticomunismo que não passam de meios para encobrir a injustiça? Também a respeito disto conservemos nossa identidade e não deixemos que se cometam abusos da crítica que fazemos ao marxismo e à análise marxista.

21 . Peço a todos um comportamento límpido, claro e fiel. Rogo-lhes que se empenhem com todas as suas forças, dentro do âmbito da nossa vocação, em favor dos pobres e contra as injus­tiças, mas sem permitir que a indignação obscureça a visão de fé, e conservando sempre, até em meio aos conflitos, um coração cris­tão, uma atitude de caridade e não de dureza.

22. Concluindo, tenho consciência de que no futuro a situa­ção da análise marxista poderá modificar-se em um ou outro ponto [3]. Além disto, a respeito dos diversos aspectos que abordei, há ainda lugar para posteriores estudos teóricos e investigações empíricas.

Mas, no atual momento, peço que todos observem as indicações e diretivas que esta carta contém; espero que ela lhes permita, e aos demais Superiores, ajudar melhor os jesuítas que, por seu minis­tério, estão mais em contato com homens e mulheres de convicções marxistas, incluindo também aqueles que se proclamam «cristãos­-marxistas». Espero igualmente que minha carta lhes permita ajudar todos os jesuítas que, tendo necessidade de analisar a sociedade, não podem deixar de enfrentar o problema da análise marxista. Assim poderemos trabalhar melhor na promoção da justiça que deve acompanhar todo nosso serviço à fé.

Muito fraternalmente em Nosso Senhor,
Pedro Arrupe, S.J.
Praep. Gen. Soc. Iesu

Roma, 8 de dezembro de 1980

Na solenidade da Imaculada Conceição de Maria»

II. SÍNTESE E COMENTÁRIO

1. Preliminares

Há, sem dúvida, numerosos membros da Companhia de Jesus (ou mesmo muitos e muitos cristãos) que vivem e tra­balham em ambientes marxistas ou lado a lado a cristãos que se dizem marxistas; isto ocorre tanto na Europa como na América Latina. Daí a tentativa de aproximação entre cris­tãos e marxistas, explicável pelo fato de que muitos operários marxistas estão longe do marxismo teórico e das discussões acadêmicas (n° 4). Tal tentativa exige reflexão a fim de se discernirem as linhas características de autêntico comporta­mento cristão.

O presente documento não tenciona considerar as rela­ções entre marxismo e Cristianismo em sua amplidão; para tanto existem pronunciamentos dos Papas e das Conferências Episcopais. Visa unicamente a responder à pergunta: pode um cristão utilizar a análise marxista, distinguindo-a da filo­sofia ou ideologia marxista como também da práxis ou, ao menos, da perspectiva global do marxismo? Cf. n° 2.

Para que o leitor possa avaliar com clareza e segurança as respostas dadas pelo Pe. Arrupe, a redação desta revista proporá breve noção do que seja a «análise marxista» em causa.

2. Que é análise marxista?

Em sua obra «O Capital» (1° volume em 1867, 2° volume em 1885; 3° volume em 1894), Karl Marx expõe o que entende por análise da sociedade. Esta vem a ser a decomposição teó­rica da sociedade atual, capitalista, e a identificação dos ele­mentos que geram e sustentam tal tipo de sociedade.

O capital ou a posse particular dos meios de produção seria a peça responsável pela história da sociedade e o seu atual estado; os proprietários, segundo Marx, exploram os trabalhadores assalariados, comprando-lhes o trabalho por salário inferior ao valor deste; a mercadoria produzida pelos operários é vendida por preço muito mais elevado do que o preço do trabalho (mais valia). Assim a classe capitalista se opõe ao proletariado e é o seu explorador coletivo. A procura constante de mais valia acarreta a crescente exploração do trabalhador: o aumento da jornada de trabalho, a exploração feroz do trabalho de mulheres e crianças, a mutilação física de milhões de operários seriam os meios utilizados pelo capi­tal para atender à sua sede insaciável de mais valia.

Todavia, em virtude da concentração e da centralização da produção capitalista, a quantidade de operários assalaria­dos cresce sem cessar; os operários aglomeram-se em massas cada vez maiores e mais compactas nas vastas empresas capi­talistas. Assim o próprio capital vai gerando, no decurso da sua evolução, a força social destinada a destruí-lo. O proleta­riado assim constituído fará a sua revolução, tomará o poder, estabelecerá a ditadura e expropriará os seus expropriadores.

Desta forma Marx pretendia ter descoberto a lei econô­mica do movimento da sociedade capitalista e mostrado que o comunismo constitui a etapa futura e inevitável do desenvol­vimento social; o advento do comunismo estaria preparado por toda a história da humanidade e pelas leis internas de evolu­ção do próprio capitalismo.

De passagem, observe-se que Marx criticou o capitalismo tal como era praticado no século XIX – o chamado «capita­lismo liberal», que realmente foi (e é, onde ele subsiste) desu­mano e anticristão. Em nossos dias o capitalismo sofre diver­sas restrições por parte da legislação trabalhista e dos planos de economia dirigida de vários Governos. Quanto ao futuro da sociedade capitalista, não ocorreu como Marx o predisse, pois este esperava que na Inglaterra e no Ocidente o comu­nismo substituísse o regime econômico vigente; as premissas de Marx, unilaterais como eram, não correspondiam à reali­dade histórica.

Voltemos agora ao texto da carta do Pe. Arrupe S.J.

3. Análise marxista e Cristianismo

Eis como o documento procede em sua exposição:

3.1. No plano prático ou concreto

No plano prático é difícil alguém assumir a análise mar­xista como método sem aceitar simultaneamente a doutrina e as prospectivas professadas por Marx. Mais precisamente, quem adota a análise marxista é levado a aceitar alguns pon­tos de doutrina logicamente concatenados com esta:

1) O primeiro vem a ser o materialismo histórico (se não o materialismo dialético), segundo o qual todos os acon­tecimentos da história são, determinados pelo fator econômico; a ordem política, a cultural, a religiosa… reduzir-se-iam a fenômenos cujas raízes seriam da esfera econômica. Ora tal reducionismo é contrária aos princípios cristãos, que reconhe­cem no homem uma alma espiritual, aberta para os valores transcendentais; estes muitas vezes no decorrer da história levaram os homens a desprezar o econômico a fim de melhor atenderem ao apelo dos bens espirituais e transcendentais. Cf. n° 8.

2) O materialismo histórico implica outrossim em seus adeptos uma atitude critica em relação à fé e ao Cristianismo, que vão avaliados segundo os critérios da produtividade eco­nômica; esta vem a ser, por assim dizer, o único valor reco­nhecido, de modo que a fé em Deus Criador e em Jesus Cristo Salvador se atenua como se fosse inútil ou mesmo alienante. Cf. n° 9.

Mais: entre os arautos de tal mentalidade, há quem dis­tinga entre Jesus Cristo e as manifestações do Cristianismo

– o que redunda em critica radical à Igreja, critica que não somente não se compatibiliza com a conduta de um bom cris­tão, mas vem a ser inegavelmente injusta e passional. Cf. n° 10.

3) A análise marxista leva outrossim a adotar concep­ções radicais sobre o conflito social e a luta de classes; na verdade, a análise marxista acha-se estruturada sobre a teo­ria da luta de classes. Ora tal modo de pensar é unilateral ou artificial; não se pode dizer que toda a história seja movida pelo conflito entre patrões e operários, pois muitos outros fatores a movem, como sejam as relações de amor, paz, aliança tanto entre indivíduos como entre sociedades. Cf. n° 11.

4) A análise marxista facilmente implica um programa de ação estratégica, ou seja, de incitamento de uma classe contra outra. O proletariado seria a vítima que, como o Mes­sias, se entregaria à morte através da luta, a fim de renovar a humanidade. Verdade é que o Cristianismo admite que, em casos de tirania extrema, a revolução armada se possa legiti­mar; cf. Paulo VI, enc. Populorum Progressio n° 31. Todavia o Cristianismo não crê que a luta armada seja o meio ordi­nário de transformar a sociedade; ao contrário, apregoa a prioridade dos recursos não violentos como a (re)conciliação, o testemunho de vida, o diálogo, etc. A filosofia – e a teo­logia – da ação do Cristianismo diferem radicalmente da praxis marxista, que é incentivo à luta de classes. Cf. n° 12.

5) Deve-se ainda observar que, embora a análise mar­xista não implique diretamente adesão à filosofia marxista como tal, sugere uma concepção de história que não corres­ponde à visão cristã e leva a estratégias que põem em perigo os valores cristãos; entre outras táticas, verifica-se que alguns cristãos adeptos da análise e da práxis marxistas, chegaram a aplicar meios moralmente ilícitos para conseguir seus obje­tivos como se o fim justificasse os meios. Cf. n° 3.

Em vista de todas essas conseqüências e ameaças que oneram a adoção da análise marxista, os Bispos latino-ameri­canos reunidos em Puebla no ano de 1979 deixaram a seguinte advertência:

“Cumpre salientar aqui o risco de ideologização a que se expõe a reflexão teológica, quando se realiza partindo de uma práxis que recorre à análise marxista. Suas conseqüências são a total politização da existência cristã, a dissolução da linguagem da fé na das ciências sociais e o esvaziamento da dimensão transcendental da salvação cristã” (n° 545).

Passemos agora a outro plano de estudos.

3.2. No plano teórico

Aqueles que em suas elucubrações teóricas tentam elimi­nar da análise marxista os elementos que a poderiam tornar incompatível com a mensagem cristã, propõem distinções alta­mente sutis, em conseqüência das quais se pode perguntar se ainda têm em mira a autêntica análise marxista. Como quer que seja, tais distinções não são praticadas por bom número de estudiosos. Os próprios marxistas, com poucas exceções, rejeitam a separação entre análise da sociedade e visão do mundo ou princípios de ação marxistas. Disto tudo se de­preende mais uma vez que se faz necessária a opção entre marxismo e Cristianismo, visto que as tentativas de aliança teórica ou prática redundam em desvirtuar ou o marxismo ou o Cristianismo. Cf. n° 115.

3.3. Ulteriores observações

3.3. 1. Um problema especial

O documento ainda chama a atenção para a problemática da propriedade particular dos meios de produção, problema que muito interessa ao marxismo. Distinga-se entre o direito à propriedade particular e a distribuição da mesma. A injusta distribuição acarreta graves males, que hão de ser superados, sem que por isto se negue o direito à propriedade particular. Todavia é para desejar que os estudiosos procurem formular os tipos de distribuição da propriedade (e do poder em geral) que contribuam para se obter um mundo mais justo e mais humano. A doutrina social da Igreja tem certamente algo de importante a dizer a tal propósito. Cf. n° 16.

3.3.2. Os «a priori» ou dogmatismos

Em matéria de análise social, é necessário evitar os con­ceitos formados a priori ou de antemão, sem que se procure averiguar a veracidade de tais conceitos. Com efeito, acon­tece, por exemplo, que certos estudiosos católicos adotam a análise marxista sem a questionar nem comprovar, como se isto não fosse oportuno; há mesmo quem a identifique com a opção pelos pobres da qual fala o documento de Puebla (n°s 383. 707. 733. 769. 1134…) – o que evidentemente é errôneo. Em suma, requer-se o máximo de objetividade no setor das ciências sociais e econômicas. Cf. n° 6b.

4. Diretrizes finais

Finalmente a carta em foco propõe quatro perspectivas referentes ao tema abordado.

4.1. Procurar compreender

Faz-se mister procurar compreender por que a análise marxista e a filosofia que a acompanha, tanto atraem os intelectuais e as massas hoje em dia. A resposta não parece difícil: os cristãos e, em geral, as pessoas honestas são, com razão, sensíveis ao ideal de pôr fim às dominações e opres­sões injustas. É preciso, porém, que a demanda deste ideal não recorra a meios que lhe são contrários, como são os meios marxistas desrespeitadores da pessoa humana; o projeto cris­tão de promoção do homem está indissoluvelmente associado à caridade, … caridade para com todas as criaturas. Cf. n° 17.

4.2. Outros tipos de análise social

Não somente a análise marxista está vinculada a pres­supostos ideológicos, mas qualquer tipo de análise social incorre no mesmo perigo: aplica uma visão individualista e
materia­lista do mundo. Será necessário, portanto, que todas essas propostas filosóficas sejam examinadas à luz do Evangelho a fim de que este não seja sufocado por outras perspectivas. Cf. n° 18.

4.3. Abertura para o diálogo

O cristão deve estar sempre disposto ao diálogo com qual­quer pessoa ou grupo honesto. Esse diálogo poderá mesmo chegar à colaboração em casos bem definidos, desde que esta seja exigida pelo bem comum. É de observar que o contato de fiéis católicos – especialmente de sacerdotes e Religiosos com marxistas jamais deverá entrar em contraste com o modo de pensar e agir da comunidade eclesiástica a que pertencem, pois esta seria comprometida pelo que os seus membros fizes­sem de destoante ou contraditório. Em toda e qualquer ativi­dade, o fiel católico guardará sua identidade religiosa ou, no caso devido, sacerdotal, procurando ser em tudo coerente com essa identidade. Cf. n° 19.

4.4. Não condenar sem motivo

O fato de um fiel católico não aceitar a análise marxista não quer dizer que condene como comunistas as justas tenta­tivas de defender a causa, os direitos e as reivindicações dos pobres e promover uma reta ordem social. Não se queira, em nome do Evangelho, proferir condenações destituídas de fun­damento. Cf. n° 20.

A carta termina pedindo aos membros da Companhia de Jesus que observem as diretrizes contidas em tal documento, a fim de que a promoção da justiça social ocorra sempre den­tro de um clima autenticamente cristão. Cf. n°s 21. 22.

Não há dúvida, a tomada de posição do Pe. Arrupe S.J., amadurecida como é, veio reforçar as convicções que muitos pensadores católicos alimentam a respeito da análise marxista. O próprio S. Padre João Paulo II em discurso aos Bispos do CELAM no Rio de Janeiro rejeitou a hipótese de utilizar-se a análise marxista como premissa para a elaboração de um sis­tema de pensamento católico:

“Importante tema na Conferencia de Puebla foi o da libertação. Eu vos exortara a considerar o específico e original da presença da Igreja na libertação. Fazia-vos notar como a Igreja ‘não necessita de recorrer a sistemas e ideologias para amar, defender e colaborar na libertação do homem’ (III, 2). Na variedade dos tratados e correntes de libertação, é indispensável distinguir entre o que implica ‘uma reta concepção cristã de libertação’ (III, 6), ‘em seu sentido integral e profundo como anunciou Jesus’ (ibid.), aplicando lealmente os critérios que a Igreja oferece, e outras formas de libertação distintas e até conflitantes com o compro­misso cristão.

… A libertação cristã usa ‘meios evangélicos, com a sua eficácia peculiar e não recorre a algum tipo de violência, nem à dialética da luta de classes …’ (Puebla, 486) ou à praxis ou análise marxista” (n° 8).

Tão sábias e ponderadas advertências já não deixam mar­gem para dúvidas no estudioso sincero.

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NOTAS:

[1] Cf. Populorum Progressio, n. 31 (A.A.S. LXIX, 1967, p. 272).

[2] Cf. Mater et Magistra, IV (A.A.S. LIII, 1951, pp. 456-457),

[3] Cf. JOÃO XXIII Pacem in Terris, n° 160 (A.A.S. LV, 1963, pp. 299-3