(Revista Pergunte e Responderemos, PR 003/1958)
“Porque dizem que o católico não pode ser comunista?”
1. O comunismo hoje muito apregoado, ou seja, o marxismo (doutrina de Karl Marx, 1818-1883), vem a ser o sistema que propugna tornar comuns de maneira radical e mais ou menos violenta, não somente os fundos produtivos (o capital e as terras), mas também os bens produzidos; preconiza assim a abolição da propriedade particular e a rigorosa igualdade social entre os homens.
O marxismo econômico e sociológico se enquadra dentro de uma concepção geral da vida ou dentro de uma filosofia, da qual é inseparável. Esta filosofia, porém, é muitas vezes ignorada por aqueles a quem certos aspectos laterais do comunismo conseguem atrair. Percorramos, portanto, rapidamente os traços dessa ideologia.
Primeiramente, o marxismo professa o materialismo, e materialismo dialético; o que quer dizer: a única realidade existente é a matéria, e a matéria posta em contínua evolução, devida ao choque de forças antagônicas. Em conseqüência, toda a história se tece de conflitos entre os elementos contrários da matéria. Tão longo processo, porém, tende ao equilíbrio e à harmonia finais. Vê-se desde já que o marxismo incute uma visão dinâmica (que os seus mentores chamam de “dialética”), em oposição a qualquer concepção estática (ou “metafísica”, diriam os marxistas) do mundo.
A matéria é eterna; está em movimento desde todo o sempre, nem pode ser concebida sem movimento. Na ideologia marxista, portanto, não há necessidade de um Motor Imóvel, Causa última de todas as causas (segundo a filosofia de Aristóteles), nem de um Criador ou Deus. A fé em um Ser todo-poderoso proviria da incapacidade de explicar os fenômenos naturais ressentida pelo homem primitivo.
Aplicados mais próximamente à sociologia, estes princípios significam que o gênero humano até a época contemporânea viveu em constante luta de classes: o capitalista é o explorador e opressor; o operário, o oprimido: “A história da humanidade registrada até hoje é história da luta de classes”, reza o manifesto de Karl Marx publicado em 1848. O fator que condiciona a luta e explica todas as atividades humanas, vem a ser a economia: “A economia e a produtividade da vida material condicionam os fenômenos sociais, políticos e espirituais da vida em geral. Não é a consciência do homem que determina o modo de ser da sociedade, mas, ao contrário, é a vida dos homens na sociedade que determina a consciência dos mesmos” (Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, Vorrede 1859).
Em outros termos: Direito, Filosofia, Moral, Arte, Religião são considerados “ideologias” ou “super-estruturas” da produção material; a classe dominante na sociedade costuma impor às demais as suas concepções filosóficas e religiosas. O feudalismo medieval e o capitalismo falavam de princípios éticos absolutos; o marxismo, ao contrário, nega a existência de normas morais imutáveis: “A nossa moral é, em tudo e por tudo, subordinada aos interesses da luta de classe do proletariado” (Lenin, Obras, 3a. edição XXV. Moscou 1933, 391). A primeira lei da ética marxista é a luta pela instauração universal da ordem de coisas comunista; não há pois, direitos absolutos, mas a força e a violência em vista do objetivo proposto vêm a ser os ditames supremos da vida social. As artes e as ciências no marxismo devem igualmente exprimir o pensamento da classe operária, isto é, hão de ser cultivadas em função do Partido Comunista; aliás, toda a cultura comunista vem a ser “cultura do Partido”, portadora de caráter popular socialista, patriotismo soviético, otimismo, etc.
Proposto ao mundo nos séc. XIX e XX, o marxismo apregoa a revolução social, da qual devem resultar a total extinção de classes e até mesmo a supressão do Estado; é a propriedade particular que divide a sociedade em classes. Para conseguir a sua meta final, o marxismo visa, em primeiro lugar, instaurar a chamada “ditadura do proletariado”, mediante a abolição do Estado burguês; os trabalhadores oprimidos procurarão aniquilar os seus opressores atuais, sendo-lhes lícito, para isto, o recurso a qualquer meio coibitivo ( em verdade, no Estado marxista, é um só homem, o ditador, quem aplica esses meios “em nome do proletariado” ou também contra o proletariado). Na fase definitiva do processo comunista, já não haverá autoridade de Estado, mas todos os homens, livres da escravidão capitalista e dos numerosos preconceitos que esta acarreta, viverão sem leis, movidos unicamente pelo entusiasmo do trabalho desinteressado, trabalho espontaneamente executado para o bem da coletividade; desaparecerão as injustiças e a miséria! — E’, pois, uma verdadeira Redenção, é um autêntico messianismo encaminhado para um paraíso terrestre, que o marxismo propõe ao mundo.
Neste quadro é claro que nenhuma das tradicionais formas de religião tem cabimento: “O marxismo é um materialismo. Como tal, é inimigo implacável da religião… Devemos combater a religião. Este é o abc de todo materialismo, por conseguinte também do marxismo” (Lenin, Obras XIV 70). “O Partido não pode ser neutro frente à religião… porque êle é favorável à ciência, ao passo que os preconceitos religiosos são contrários a esta” (Stalin, Obras X 132). Não é menos verdade, porém, que a ideologia marxista com a sua mística, ou seja, com a sua fé entusiástica na consecução da felicidade integral, se torna uma religião exigindo para as instituições e os representantes do comunismo a adesão que sempre foi tributada a Deus. Já Oostoevskij (†l881) dizia muito bem, como que caracterizando antecipadamente os comunistas contemporâneos: “Os nossos homens não se tornam ateus apenas, mas crêem no ateísmo como em uma religião”. Tem-se observado repetidas vezes que o marxismo se apresenta como um catolicismo às avessas; muitos são os pontos de contato de ambos, trazendo apenas sinais inversos de valorização (positivo, negativo; à direita, à esquerda).
2. Qual o juízo a proferir sobre tais teorias?
Não se pode negar que a ideologia marxista encerra um núcleo de verdade: o mal-estar da sociedade provém não raro do predomínio injusto de uma classe sobre as outras ou da defeituosa distribuição dos bens produtivos. Desta verificação, porém, não se segue que a solução consista em suprimir a propriedade privada e as classes sociais. Com efeito:
a) não se podem reduzir todos os problemas humanos à questão econômica, como se o homem por sua natureza fosse destinado a ser mero produtor e consumidor de bens materiais, ficando as suas demais aspirações dependentes da satisfação desta primeira. Haja vista a família: não são as necessidades econômicas que dão origem à família, mas, ao contrário, é a família que funda a economia (o termo grego oikonomia o diz muito bem: oikos, casa; nomia, dispensação, legislação). E’ o desejo de se perpetuar e de certo modo imortalizar que leva o homem a constituir um lar e a procurar conseqüentemente, mediante a sua indústria (caça, pesca, agricultura), os meios de subsistência para os seus familiares.
Também é vão dizer que a Filosofia, a Moral, a Religião são funções da produção material, embora possam sofrer a influência desta: existem, sem dúvida, verdades especulativas e normas éticas objetivas, imutáveis: que a soma dos ângulos de um triângulo seja igual a dois retos, é proposição que nenhum sistema econômico jamais poderá alterar. Em particular no tocante à religião, é absurdo apresentá-la como expressão do homem covarde ou atrasado: o testemunho dos povos, os documentos da civilização aí estão a dizer o contrário. A religião sempre foi o fator que estimulou a civilização e a indústria dos diversos povos: a construção da habitação humana, a fundação de cidades, a abertura de estradas, a ereção de pontes, a domesticação de animais, o cultivo de plantas, a contabilidade bancária são realizações inspiradas inicialmente por motivos religiosos; a religião, longe de coibir, sempre fomentou o exercício das faculdades superiores do homem (inteligência e vontade); a história da ciência e a da civilização são, em grande parte, tributárias das aspirações religiosas que constantemente moveram os homens a novos empreendimentos. Veja-se a propósito a abundante documentação citada por P. Deffontaines, Géographie et Religions. Paris 1948.
b) A tese da eternidade da matéria está em contradição com a da evolução ascensional da mesma matéria; carência de início e evolução são termos inconciliáveis entre si, pois toda evolução supõe necessariamente um ponto inicial e outro final. A hipótese da eternidade do mundo está também em desacordo com a ciência moderna, que não somente requer um ponto de partida para o processo evolutivo do universo, mas também fala de relativa “juventude” do cosmos (cerca de dez bilhões de anos).
c) Entre os homens existe, sim, igualdade básica de natureza (todos são animais racionais), diferenciada, porém, por características acidentais, pessoais; dotados de diversa capacidade intelectual e variada energia de vontade, os indivíduos tendem pelas suas atividades a se dispor em hierarquia, devida ao uso e ao abuso que cada um faz de suas qualidades. As desigualdades econômicas, portanto, provêm em grande parte das desigualdades naturais que intercedem entre os indivíduos; por isto é que não são condenáveis, desde que se mantenham dentro de certos limites e não impeçam a colaboração de todos para o bem comum. O nivelamento dos indivíduos mediante a extinção da propriedade particular é contraditório à própria natureza humana, como o comprova a experiência da Rússia mesma: a sociedade soviética conhece hoje de novo as suas classes, os seus indivíduos e grupos privilegiados, embora os nomes e títulos sejam diferentes dos que estavam em voga no regime imperial. Donde se vê que a igualdade entre os homens não poderá ser aritmética, mas há de ser proporcional: todo indivíduo na sociedade há de gozar de direitos particulares, correlativos às suas aptidões naturais e à contribuição que ele possa prestar ou haja prestado ao bem comum.
De resto, fraternidade entre os homens sem crença em Deus é impossível; se não se reconhece um Pai comum nos céus, com que direito se exigirá que os homens se reconheçam uns aos outros como irmãos sobre a terra? Cedo ou tarde, mostra-nos a história que as tendências egoístas se atuam, corroendo a filantropia dos ateus. Muito menos se pode esperar que, sem Deus, os homens instaurem o paraíso sobre a terra, vivendo sem leis, em espontânea concórdia. Tal expectativa ignora totalmente a realidade histórica: a natureza humana e, com ela, o mundo visível estão sujeitos à desordem que o pecado inicial introduziu (pecado de que falam as reminiscências mesmas dos povos primitivos); e somente pela reconciliação do homem com Deus é que se poderão obter harmonia e bem-estar neste mundo. — A luz destas considerações, o marxismo aparece claramente como uma religião desviada do seu verdadeiro objetivo. Aliás, já dizia muito a propósito Donoso Cortês, o famoso estadista (†l853): “Toda civilização é sempre o reflexo de uma Teologia” (Ensayo sobre el catolicismo, el liberalismo y el socialismo 1851).
Vê-se, por fim, que não há compatibilidade entre catolicismo e marxismo plenamente entendidos. Isto, não exclui que certas teses marxistas referentes à economia ou à administração pública possam ser incorporadas à ideologia cristã. Segundo as declarações dos próprios comunistas, o marxismo não pode nem quer ser concebido independentemente do quadro filosófico ou do materialísmo dialético que inspirou a Marx; qualquer tentativa, como a da II Internacional, de edificar o comunismo sobre outro fundamento filosófico é rejeitada pelo bloco marxista preponderante qual deviação ou heresia (sabe-se que a II Internacional, de 1880 ao fim da primeira guerra mundial, foi tida por Lenin, Trotzkij como Internacional dos social-patriotas e dos traidores). A prática do marxismo é indissolúvel da respectiva teoria; por isto também tudo que o marxista realiza na vida pública, ele o realiza no espírito do partido. Diz Lenin: “O materialismo implica, por assim dizer, o espírito de partido, enquanto nos obriga, em todo juízo que formulemos sobre um acontecimento, a colocar-nos direta e abertamente do ponto de vista de certo grupo social” (Obras I 380s).